quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Capital das contradições

Apesar de todos os problemas, floresceu nos anos JK uma poderosa classe média urbana, principalmente no Rio de Janeiro e em São Paulo, sintonizada com os avanços tecnológicos verificados nos Estados Unidos e na Europa. Em ambiente político relativamente estável e democrático – algo praticamente inédito na história brasileira –, a classe média experimentou um momento de explosão criativa.
O aumento da população economicamente ativa criou condições para o desenvolvimento comercial do teatro, do cinema e da música. No final dos anos 50, surgiu a bossa nova, com João Gilberto, Tom Jobim e Vinícius de Moraes, entre outros. No teatro, Nélson Rodrigues escandalizava, ao retratar a hipocrisia e os conflitos materiais e existenciais da classe média urbana. O público consumidor alimentava as produtoras Atlântida (que adotou a fórmula da chanchada, inspirada na receita de sucesso de Hollywood) e Vera Cruz (cujos filmes tinham um conteúdo mais elaborado).
Em 1955, Nélson Pereira dos Santos lançou o Cinema Novo, com o filme “Rio 40 Graus”. O realismo proposto pelo movimento atrairia o gênio baiano Gláuber Rocha, cuja concepção estética foi sintetizada na famosa frase: “Uma idéia na cabeça, uma câmera na mão”.
No fim do governo JK, portanto, o país estava em processo de profunda transformação, em todos os sentidos.
Brasília prometia a modernidade, as grandes cidades estavam mudadas e a arte buscava novos caminhos.
No dia-a-dia, a presença cultural estadunidense se multiplicava por todos os lados: na grande indústria, nos arranha-céus, na publicidade, nas roupas, no cinema.
Por outro lado, a grande concentração de operários nas cidades deu novo impulso aos movimentos trabalhistas e sindicais. No contexto da Guerra Fria, a Casa Branca temia possíveis levantes comunistas na América Latina, a exemplo do que ocorreu em Cuba, em 1959. O vice presidente João Goulart, oriundo do trabalhismo varguista, era motivo de grandes inquietações e críticas por parte dos mesmos setores que tentaram impedir a eleição de JK, em 1955. Para piorar, em 1959, o presidente adotou uma retórica nacionalista, ao romper com o Fundo Monetário Internacional, que havia condicionado a liberação de empréstimos a uma política de contenção salarial e corte nos gastos públicos.
O golpe de 1964 selou o destino político de JK. Os seus direitos políticos foram cassados e ele foi forçado ao exílio. Ironicamente, os seus algozes, ao impor um regime ditatorial, culturalmente medíocre e sombrio, ajudaram a construir o mito nostálgico de uma era anterior esplendorosa, quando o Brasil era presidido por um ser humano notável, ousado, simpático, democrático, bem humorado, entusiasta e visionário: o “presidente bossa nova”, como foi apelidado por Juca Chaves.
O mito JK revela o sonho de um país desenvolvido, rico, independente, autônomo, cheio de oportunidades e empregos. Revela, por efeito de contraste, tudo o que o Brasil não é.
Brasília seria o grande símbolo do “Brasil novo” idealizado por JK. Não seria, portanto, apenas uma cidade, uma construção urbana, um local geográfico, mas sim a chave de um novo tempo. A inauguração de Brasília, nessa perspectiva, corresponderia à re-inauguração do Brasil. Construindo Brasília, o país deixaria para trás os hábitos cultivados por séculos de dominação de uma oligarquia retrógrada, os costumes clientelistas, o atraso rural.
JK gostava de se imaginar como um moderno bandeirante, encarregado de levar a civilização para as áreas mais incultas e longínquas do país. Viana Moog, um de seus autores de cabeceira, enaltece o esforço “civilizatório” e desbravador dos bandeirantes paulistas, no seu livro Bandeirantes  e pioneiros. Ecoando as concepções positivistas e racistas tão em voga no início do século passado, Moog afirmava que o “espírito bandeirante”, corporificado pela indústria de São Paulo, poderia “curar” o povo brasileiro de seus males tradicionais, entre os quais o “desamor ao trabalho” e o cultivo de um “espírito lúdico” acima de todas as outras preocupações.
O Estado, portanto, poderia e deveria reinventar a nação. A forma pela qual o próprio JK descreve a missa inaugural de Brasília lembra muito as crônicas sobre a primeira-missa celebrada pela expedição de Pedro Álvares Cabral, em 1500.
JK dizia que, na missa inaugural, “carajás vestidos de penas” se misturavam às “elegantes damas da sociedade carioca, exibindo as últimas criações dos costureiros de Paris”. É uma clara alusão à missa de 1500, quando nativos e europeus foram abençoados pela Igreja.
Coerente com o espírito eufórico e democrático que embalava JK, o plano piloto da nova capital não foi escolhido por decreto, mas sim selecionado após a realização de um rigoroso concurso, oficialmente lançado em 30 de setembro de 1956. Um júri internacional, formado por arquitetos mundialmente respeitados, selecionou os melhores trabalhos. O vencedor foi o arquiteto Lúcio Costa, e o encarregado de projetar os edifícios foi seu amigo e parceiro Oscar Niemeyer.
É muito difícil, quase impossível imaginar o impacto mundial que a construção de Brasília causou há cinco décadas.
Entre o início das obras, em 1957, e a inauguração da cidade, quase três anos e 40 bilhões de dólares (em moeda atual) depois, Brasília foi visitada por diplomatas, chefes de Estado, políticos e artistas. Apenas para citar alguns: o príncipe Mikasa do Japão, a bailarina Margot Fonteyn, o ex-presidente dos Estados Unidos Dwight Eisenhower, Fidel Castro, André Malraux, Aldous Huxley e dezenas de outros. Não era só a “festa” que atraía a curiosidade. Havia, desde o início, o enigma colocado por uma contradição inerente à própria proposta de JK. O Brasil, por mais moderno que desejasse parecer, era e continuava sendo uma sociedade conservadora que apenas ingressava, já tardiamente, na era industrial.
Como era de se esperar, as maiores reações à construção de Brasília tiveram origem na então capital do país, o Rio de Janeiro. A imprensa local tornou-se porta-voz da oposição à construção da nova cidade. Articulistas irados – em especial Carlos Lacerda, líder da UDN (União Democrática Nacional) e dono da Tribuna da Imprensa - acusavam JK de ter pretensões de se tornar um “novo faraó”, de acobertar “ladrões” e de “jogar no lixo o dinheiro da nação”. A elite fluminense e carioca temia perder poder, prestígio e dinheiro com a transferência da capital para o centro geográfico do país.
Inversamente, para o empresariado paulista, favorecido pelo surto de industrialização, Brasília representava a oportunidade de novos investimentos, além de afastar os rivais do Rio do núcleo do poder. O capital paulista apoiou sem hesitar a construção de rodovias ligando Brasília a Belém, ao Acre e a outras regiões.
Pensadores e líderes de esquerda, como o comunista Luiz Carlos Prestes e o trotskista Mário Pedrosa aliavam-se, na defesa de Brasília, às elites de São Paulo e Minas Gerais. Além de acreditar na utopia da modernidade prometida por Brasília, a esquerda também se sentia, de certa forma, comprometida com o governo JK. Em plena Guerra Fria, e ainda sob o impacto da Revolução Cubana (1959), o Partido Comunista Brasileiro desfrutava da semi-legalidade, depois amargar anos de dura perseguição. Mário Pedrosa achava, além disso, que se os governos sentissem em sua pele a “solidão” de Brasília e a proximidade da miséria que imperava no meio rural brasileiro, e caso se mantivessem  afastados dos poderosos grupos de pressão que atuavam nos centros urbanos, eles se sensibilizariam para os problemas sociais do país.
A total contradição entre a realidade de Brasília e o projeto que a idealizou foi revelada já durante sua construção, com o “massacre da GEB” (Guarda Especial de Brasília, de 300 homens, criada em 1958), ocorrido num domingo, 8 de fevereiro de 1959, nas dependências da construtora Pacheco Fernandes Dantas, uma das empreiteiras contratadas pelo governo para erigir a capital. Esse episódio nunca foi completamente esclarecido. Nunca foi apurado quantos operários foram mortos pela GEB – fala-se numa cifra entre 9 e 11 –, nem onde seus corpos foram sepultados, nem quem foram os responsáveis pelas mortes.
Ao que parece, o “domingo sangrento” aconteceu assim: os operários (“candangos”) que trabalhavam na construção de Brasília - em geral, camponeses sem terra oriundos do Nordeste - eram submetidos a condições sub-humanas  de vida. Dormiam em barracas mal construídas, muitas vezes no chão, e não raramente eram alimentados com comida podre. Naquele domingo, os trabalhadores iniciaram uma revolta na cantina da empreiteira. Guardas da GEB tentaram reprimir a manifestação, mas teriam sido ameaçados. Em represália, atacaram os “candangos” pelas costas, aparentemente quando dormiam, atirando em gente indefesa.
Os fatos só atingiram a imprensa do Rio cinco dias depois do “incidente”. O governo federal tentou caracterizar o massacre como um “assunto local”, eximindo-se de qualquer responsabilidade.
As versões fornecidas pelos trabalhadores eram contraditórias, provavelmente porque muitos temiam represálias caso contassem tudo o que sabiam, e nada foi devidamente apurado.
O Brasil real cobrava seu tributo em sangue.

História e Cultura n° 1 Ano 2

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