Minha viagem para a Bulgária começou pela Eslovênia. Na verdade, ela havia se iniciado, sem eu saber, um ano antes quando consegui um estágio numa fazenda de produtos orgânicos próxima a Umag, uma cidade da Croácia, terra de meus avós paternos, localizada na península da Ístria, bem próxima da Itália. Em troca de alimentação e estadia, fiquei trabalhando ali por seis meses antes de conseguir outros estágios semelhantes na Áustria e na Eslovênia.
Em Liubliana, capital da Eslovênia, necessitei de um visto para atravessar a Sérvia e me dirigir à Bulgária, para um novo estágio. Fiz a viagem de Liubliana a Belgrado, capital da Sérvia, via Zagreb, capital da Croácia, de trem. Enquanto estive acordado, meus olhos viram paisagens de planícies com extensos campos de cultivo.Senhoras com lenço na cabeça carpiam a terra.
Ao redor de Belgrado, favelas. Acho que a população da periferia da cidade é constituída, principalmente, por ciganos (o povo rom, como eles se denominam).
Muitos carros de modelos antigos. No centro, uma manifestação estava sendo preparada: segundo me informaram, ela tinha como tema a “aproximação” da Sérvia com União Européia.
Belgrado é a cidade onde os rios Danúbio e Sava se encontram. Num morro frente a este ponto ficam as muralhas da cidadela de Kalembegdan, construída pelos celtas e ampliada pelos romanos.
Segundo os locais, em sua longa história, a cidade foi destruída e reconstruída dezenas de vezes.
O trem de Belgrado partiu para Sófia, capital da Bulgária, levando muitos passageiros que me pareceram de origem turca.
Senhoras portando duas a três malas. Não pareciam conter apenas pertencentes pessoais.
Lembraram-me os nossos sacoleiros.
Já no trem, um turco troncudo pôs suas malas no bagageiro. Ofereceu-me um refrigerante extremamente doce e, sem pedir permissão, pegou minha mala e colocou por cima da dele. Tirei minha mala dali, mas ele voltou a colocar as malas na mesma posição. Falando em turco e búlgaro, me fez entender que eu era um civil “normal”, sem problemas de fiscalização.
Então, ele quis esvaziar a minha mala e colocar nela os pacotes de cigarros que transportava em sua mala.
Tentei, em vão, explicar-lhe que eu não era um civil “normal”, que passaporte brasileiro gera desconfiança de tráfico de drogas.
Ele ameaçou jogar minha mala pela janela do trem. No fim, acho que entendi.
Ele queria que eu deixasse a cabine só para ele. Resumo: fui para o fim do vagão.
Na fronteira da Sérvia com a Bulgária o trem ficou um tempão parado. Policiais fizeram uma fiscalização bem detalhada, mas não abriram minha mala.
Em Sófia arrumei uma carona até Buinovo, onde fica a fazenda onde eu cumpriria o estágio. Buinovo situa-se nas proximidades das montanhas Rodope.
Rodope, montanhas destinadas à tristeza.
Foi lá que, segundo a lenda, Orfeu cantou as lágrimas da perda de sua amada Eurídice, tragada numa das cavernas da região, o portal de entrada do reino de Hades.
Buinovo tem cerca de três centenas de habitantes, que parecem viver em feliz harmonia. Comparada com as vilas das planícies do norte do país, tem-se a sensação de que, em Buinovo, o alvorecer se atrasa. Todo o processo vegetativo se estabelece com sofrimento.
Fiquei numa fazenda que conduz um projeto de agricultura ecológica, sob o comando do casal britânico Ian e Catrin.
Gente muito dinâmica em idéias e ação.
Para a época do verão não havia muito trabalho a fazer na horta. Carpir um pouco, dar água a alguma planta que necessitasse de cuidados especiais... Com pouco trabalho a fazer, aproveitei para conhecer alguns lugares do país. Um dos destinos foi a cidade de Plovdiv, nas planícies fora da região mais montanhosa.
Plovdiv é a segunda maior cidade búlgara. Dizem que Roma e Atenas não são tão antigas como Philippolis, um dos antigos nomes de Plovdiz. Dizem também que Plovdiv é contemporânea de Tróia. Estava caminhando pela estrada que leva ao entroncamento com a cidade de Smolian quando um veículo policial me parou.
Scheisse! Vamos, liberem-me logo. Afinal tenho ou não cara de simples turista?
“Az ne razbiram bulgarsko”, ou seja, “não entendo nada de búlgaro”.
Os policiais analisaram detidamente o meu passaporte e por fim pediram-me que entrasse no carro. Assim, conheci a delegacia da cidade de Devin. Meia hora sentado numa mesa esperando. Um policial brinca e cita o nome do jogador Sócrates.
Por fim, liberam-me após um registro e dizem que tenho permissão de dois meses de estadia na Bulgária.
Apesar de tudo, gostei muito dos dois meses que passei na Bulgária. De certa forma, senti-me um pouco pioneiro já que nunca ouvi falar de brasileiros no país. A Bulgária não é um pólo de atração, como os países da Europa Ocidental.
Muito pelo contrário: o país se encontra ainda com um pé na estrutura planificada, na “lama” dos tempos do regime comunista. Nem é uma destinação turística consagrada, exceto pelo trecho do litoral do Mar Negro, com praias de areias brancas e uma infra estrutura criada para atender a máfia russa ou a classe média nórdica, em busca de sol e dos baixos preços dos pacotes de verão.
Adorei a hospitalidade das pessoas, as tradições e referências culturais, as paisagens, o idioma. No fim de junho, precisava ganhar alguma grana para me sustentar e resolvi partir rumo ao norte. Senti-me um pouco desorientado e uma melancolia indefinível me envolveu. É difícil deixar lugares e pessoas que possivelmente não se voltará a rever. E, na Bulgária, há certamente muito a se descobrir.
Boletim Mundo n° 6 Ano 14
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