quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

ENTRE A UTOPIA DE BOLÍVAR

Newton Carlos

Alguém definiu o pan-americanismo como um “círculo de solidariedade” envolvendo as Américas espanhola e  anglo-saxônica. “Pan” é totalidade. Já um dirigente da Confederação Indígena do Equador disse que se trata de “coisa de branco”, sem nada a ver com a origem indigenista do continente e às lutas relacionadas com ela. Ele se referia aos 181 anos de conferências com agendas de relações interamericanas, não à montagem de um arcabouço que bem ou mal procura dar vida real à idéia de sobrevivência integrada. A criação, por exemplo, da Organização Pan-americana de Saúde. Há entidades de defesa das mulheres, dos direitos humanos e também de políticas indígenas, de corte acadêmico, é verdade, sem presença forte nos avanços políticos das organizações e personalidades nativas.
Uma redenção indigenista (pelo menos a presidência de um pais já foi alcançada) exigirá uma mudança de perfil do pan-americanismo, que tem mesmo a cara de branco herdeiro da coroa espanhola e de aristocratas de Londres. Na realidade uma coisas de criolos na América Latina. O próprio Bolívar era de origem basca. Tupac Amaru, o herói incaica peruano, nunca foi companhia de personagens da galeria do pan-americanismo, cuja definição enciclopédica é a de um “movimento diplomático, político, econômico e social que busca criar, fomentar e ordenar as relações, a associação e a cooperação entre os estados da América em diversos âmbitos de interesse comum”. Tupac foi um fator de rebeldia no interior dos embates em busca de um sistema pós-colonial, no qual sobressaissem os balcões e não os casebres andinos.
A idéia de um pan-americanismo estava embutido  nessas lutas, embora sem uma agenda “totalizante” (Washington é uma preocupação antiga) e sem previsão de manipulações futuras. Hoje um Tupac seria muito bem recebido num pan-americanismo constrangido a incorporar novos atores. Tupac é o passado indigenista reprimido, Evo Morales é o presente, talvez ponto de partida de uma redenção indigenista que alcançaria os balcões antes só habitados por admiradores de Bolívar, Mitre, Sucre, etc. Talvez prefácio de uma nova ordem pan americanista, carregando registros passados de baixarias, arrogância, uns passando as pernas nos outros, documentos de vacuidades retóricas e intenções sinistras e algumas boas intenções. Bolivar quis articular uma confederação hispano-americana. Botou isso na Carta da Jamaica, de 1815. Onze anos depois realizou-se, sob o signo do bolivarismo, da criação de uma entidade hispano-americana, a conferência do Panamá. Mas não participaram a Argentina na rota de uma classe média (ou burguesia) emergente, o Império do Brasil, o Chile enraizado e isolado no sul e os Estados Unidos já com ares de potência em busca de hegemonia.
Desde à Carta da Jamaica os americanos ficaram de pé atrás, Os espanhóis estavam a caminho da derrota, os novos heróis, assessorados pelos ingleses, eram criolos, herdeiros da coroa espanhola, uma reincidência colonial, disfarçada ou não, afetaria os interesses dos Estados Unidos.
O pan-americanismo, na época ainda em gestação, recebeu sua primeira porrada. Um ano antes do Congresso do Panamá o presidente americano, James Monroe, incorporou a Doutrina Monroe ao arsenal dos Estados Unidos. Dizia textualmente: –“Julgamos essa ocasião propícia para afirmar, como um principio que afeta os direitos e interesses dos Estados Unidos, que os continentes americanos, em virtude da condição livre e independente que adquiriram e conservam, não podem mais ser considerados no futuro. Como susceptíveis de colonização por nenhuma potência européia”.
A América para os americanos, do norte, claro. Em 1824, os espanhóis foram derrotados em Ayacucho, no Peru, o que fez George Cunning, o esperto chanceler imperial inglês, gritar de alegria “a América Latina é livre e se Deus quiser será nossa”. Havia um general inglês em Ayacucho. Com tropas. Foi a partir daí que Washington desenvolveu a idéia de um pan-americanismo em causa própria, nem sempre pelo menos expressado civilizadamente.
Em 1904 Theodore Roosevelt lançou o corolário da Doutrina Monroe, tratando a América Latina como zona direta de expansão e proteção dos interesses dos Estados Unidos. De Roosevelt é a frase “I took Panamá”, ou “eu tomei o Panamá”, onde foi construído o canal, faixa colonial americana até o ano dois mil. Pan-americanismo e “big stick”. Ou porrete..
São fatos que os scholars analisam como “dificuldades do pan-americanismo”. Até à invasão de São Domingos, em 1965, os Estados Unidos intervieram na Nicarágua, México, Honduras, Cuba e Haiti. Só em 1936, com Franklin Roosevelt procurando garantir alianças e fontes de matérias-primas para a guerra que se aproximava, os Estados Unidos aceitaram formalmente o princípio da não intervenção, vigente na Europa, a partir de uma ordem medieval, desde o século 17. O pan-americanismo iria ter várias versões. A mais famosa foi a Aliança para o Progresso, de Kennedy, fechada para balanço com a descoberta de que os milhões de dólares acabavam parando em mãos de latifundiários. Bush tenta, mas não consegue, incorporar a “guerra contra o terror” ao pan-americanismo.
As primeiras estacas da OEA (Organização dos Estados Americanos) foram batidas em Bogotá em 1948. Mais um salto. Agora se tratava de conter uma “nova forma” de colonialismo, a soviética. Na época Bogotá estava em chamas por outras razões, um levante de marginalizados, preâmbulo de uma guerra civil que dura até hoje. A OEA tem sua origem mais remota na União Internacional das Repúblicas Americanas, criada em 1890 por iniciativa dos Estados Unidos. O continente precisa ter “voz autorizada diante de uma Europa colonialista e reincidente”.
Também por ai navega o pan-americanismo. Nos anos 20 mais da metade dos diplomatas americanos se concentravam na América Central. Era o auge de montagem de um primeiro lote de “ameaças”, que se tornaram uma constante da diplomacia americana.
Embora os Estados Unidos tenham saído da Segunda Guerra como potência global, o Pentágono recomendou que a Doutrina Monroe continuasse vigente. Era o velho muro do pan-americanismo contra ambições externas.
Em nome desse cordão sanitário, em que se tornou a idéia de uma “vida integrada” no continente, foi dado um golpe de Estado na Guatemala, também no Chile, Brasil, Argentina e Uruguai, Cuba foi isolada, Granada e São Domingos foram invadidas, tocaram fogo na América Central e só no governo Clinton a Casa Branca tentou enterrar de vez a Doutrina Monroe. Clinton mandou mensagem  ao Congresso declarando que não pesavam mais sobre a América Latina ameaças externas. Desaparecia o eixo central da Doutrina Monroe, mas seu sepultamento ainda não foi anunciado.
O pan-americanismo tem suas pérolas. Em 1954 a OEA se reuniu em Caracas, capital de um pais sob ditadura militar, com o único objetivo de reforçar seu “arsenal ideológico”.
John Foster Dulles, na época secretário de Estado americano, comandou o espetáculo quase todo feito à beira de piscinas de hotéis de luxo. Foi incorporado à carta da OEA o principio de que o continente entraria em alerta toda vez que “o domínio ou o controle de instituições políticas de qualquer Estado americano fique em mãos comunismo internacional”. Pau no governo constitucional da Guatemala, cujo pecado foi fazer algumas reformas sociais, e depois em Cuba. Em outra reunião em pais sob ditadura militar, o Chile de Pinochet, em 1976, Kissinger teve um encontro com o militar que se tornou ministro do Exterior da ditadura argentina.
Aperto de mãos com Pinochet, imagem do pan americanismo daquele momento. Há informações bem calçadas de que Kissinger deu sinal verde para a matança na Argentina. Dois anos depois na Copa do Mundo na Argentina, Kissinger foi convidado de honra da ditadura.
Assumiu com largos sorrisos e pleno usufruto de mordomias a tarefa de defender o regime militar diante da grande quantidade de jornalistas atraídos tanto pelo futebol como pela tragédia argentina. O pan-americanismo tem disso. Agora a palavra de ordem é defesa da democracia, talvez subtítulo da grande festa dos jogos pan-americanos.

História e Cultura n° 3 Ano 3

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