Há intensa conexão entre o gênese das primeiras aglomerações urbanas e a presença e manejo dos corpos d’água. Há mais de cinco mil anos, a organização urbana da humanidade associou-se à possibilidade da execução de obras infra-estruturais hidráulicas, que garantiram a prosperidade dos primeiros grandes assentamentos, baseados no desenvolvimento da agricultura.
Em pleno século XXI, nosso país já tem uma população urbanizada de 140 milhões de pessoas, que correspondem à cerca de 80% da população total. No entanto, somente 20% do esgoto produzido nos núcleos urbanos é coletado e tratado. Produzimos uma demanda bioquímica de oxigênio (DBO) de 7,6 milhões de quilogramas por dia e estamos lançando diariamente 6,5 milhões de quilogramas aos nossos cursos d’água.Além disso, 92% da energia elétrica que produzimos é proveniente dos aproveitamentos hidrelétricos, isto é, das águas.
Em março de 2003, no dia mundial da água, em meio ao 3º Fórum Mundial da Água, em Kyoto, foi apresentado o relatório “Water for people, water for life”, preparado pelas comissões da Unesco que tratam das questões de recursos hídricos. O relatório estimou que dois bilhões de toneladas de lixo no mundo têm sido jogadas aos rios, lagos e riachos, todos os dias. No cenário otimista, a ONU apontou que faltará água para dois bilhões de pessoas e, num cenário pessimista, para sete bilhões, em 2050.
Mas não precisamos ir muito longe...
Temos aqui, no Brasil, a situação de escassez se apresentando em metrópoles como São Paulo, cortada por um importante rio, o Tietê, que tentamos despoluir já há algum tempo. Isso é fruto de um processo histórico, onde o rio fica relegado ao esquecimento da sociedade, perde suas características e funções originais, e sua vinculação com o habitante da urbe.
A paisagem urbana em três tempos Partindo das relações entre a urbe e seus recursos hídricos, pode-se definir três períodos principais de uma história das águas da cidade de São Paulo.
Num primeiro período, entre o século XVI e a primeira metade do XIX, a paisagem natural das águas é dominante na geografia do núcleo urbano paulistano. A água está inserida nos modos de vida da população. Os rios fazem parte da rotina de seus habitantes e desempenham papel de indutores da urbanização, como meio de transporte e comunicação fundamentais para o sistema.
Num segundo período, de 1850 a 1930, as possibilidades e escolhas tecnológicas modificam as relações da população da cidade com seus rios. A possibilidade de abastecimento de água por encanamentos e adução cada vez mais distante permite que se afastem os mananciais da cidade, o que eliminará as primitivas fontes públicas e chafarizes, implantando o fornecimento de água à domicílio na cidade.
Assim, os rios próximos perderam sua importância como mananciais da urbe e passaram a ser considerados obstáculos ao crescimento da cidade. Essa é a moldura
na qual se desenvolve o interesse pela aquisição de terras como investimento. A cidade de São Paulo insere-se no cenário do capitalismo internacional e torna-se cenário da ação das grandes empresas responsáveis pelo fornecimento de infra-estruturas e novas tecnologias.
O terceiro período, a partir de 1930, é aquele no qual a cidade avança sobre as suas várzeas e a marcha desenfreada da urbanização ocupa as áreas inundáveis. O Plano de Avenidas, cuja implementação foi desencadeada na gestão do engenheiro Prestes Maia, nos anos 40, estabeleceu um sistema de circulação baseado nas vias de fundo de vale e nas marginais aos rios principais (Tietê e Pinheiros), no qual prevaleceu o transporte individual e a cidade subordinou-se ao primado do automóvel.
A paisagem de São Paulo vai então se configurando segundo estes novos modelos urbanísticos, a maioria de origem americana, que se reproduzem pelo território brasileiro. Segundo essa visão a “teia” viária da cidade teria como espinha dorsal seus principais rios, e os afluentes funcionariam como eixos distribuidores do tráfego secundário. Curiosamente, esse modelo tecnológico de “tomar” terras às águas para a implantação de avenidas e ruas, e concentrar sobre as águas a carga urbana de dejetos, foi engendrado há mais de dois milênios, na cidade de Roma, quando foram efetuados os dessecamentos do Vale do Tibre para a implantação da Cloaca Máxima e do Circus Maximus.
Sobre esse vasto sumidouro se construiu o grande fórum da cidade romana.
Associado a essas obras e intervenções da engenharia, o intenso processo de metropolização de São Paulo foi acompanhado da excessiva especialização dos sistemas de gestão das infra-estruturas necessárias à manutenção da urbe. Daí decorreu a fragmentação da gestão dos recursos hídricos, compartimentada entre agências de geração de energia, saneamento básico, controle de inundações, fornecimento de água potável . Atrás da máquina burocrática incapaz de enxergar a totalidade da paisagem urbana, oculta-se a degradação das águas de São Paulo e se produz a escassez de recursos hídricos.
Boletim Mundo n° 6 Ano 13
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