quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

MIL VEZES FAVELA!

Demétrio Magnoli

A palavra “favela” é uma exclusividade brasileira, embora, como é óbvio, existam favelas em todos os países do mundo, inclusive nos Estados Unidos e na União Européia. Em inglês, utilizam-se as palavras slums e bustees. Nos países de língua francesa usa-se a expressão bidonvilles (cidades de lata). Nos de língua espanhola, ranchitos, barriadas e poblaciones.
Em 1897, o Exército da jovem República brasileira esmagou a revolta dos sertanejos de Canudos. No interior da Bahia, os soldados acampavam em chapadas e platôs semi-áridos, onde crescia o faveleiro, arbusto típico da caatinga. Quando retornaram ao Rio de Janeiro, receberam do governo, como reconhecimento pelos serviços prestados, o usufruto de terrenos nos morros, onde ergueram barracos. A memória da longa convivência na campanha de Canudos levou-os a batizar com o nome “favela” a aglomeração de barracos onde passaram a morar.
Um novo mapa, baseado em dados do IBGE e publicado no Atlas do Brasil de Hervé Théry e Neli Aparecida de Mello (São Paulo, Edusp, 2005), revela a difusão das favelas por todas as regiões e praticamente todos os estados do país. A presença de favelas, de modo geral, acompanha como uma sombra as manchas de urbanização. Se há cidade, há favela – é, virtualmente, essa a mensagem principal do mapa. Mas há favela até mesmo onde não há cidade: as várzeas amazônicas e o Amapá são exemplos de favelização do meio rural.
A favela representa um artifício para morar sem consumir as mercadorias imobiliárias.
Os “proprietários” de imóveis nas favelas não têm títulos de propriedade nem do imóvel nem do terreno. E isso é o que caracteriza a favela, não a sua aparência externa. Como regra, as favelas são constituídas por barracos e mocambos construídos com materiais de refugo como tábuas soltas, caixotes, folhas de zinco, barro e papelão. Mas a favela continua sendo favela se, como acontece cada vez mais freqüentemente, seus moradores reformam as moradias usando tijolos e tetos de amianto.
Não é a pobreza ou o aspecto caótico que definem a favela, mas a ocupação ilegal e precária de terrenos públicos ou privados.
Contudo, a informação mais interessante do mapa de Théry e Mello não é a extensão geográfica da presença de favelas, mas a distribuição espacial do número de domicílios em favelas. A leitura do mapa revela que a maioria absoluta dos  residentes em favelas encontram-se em quatro regiões metropolitanas do Sudeste e Sul: São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre e Curitiba. Além disso, a quantidade de domicílios em favelas nas cidades do interior do Sudeste e do Sul rivaliza com a da Região Nordeste, aí incluídas as metrópoles nordestinas. Ou seja: o fenômeno da favela associa-se, mais nitidamente, àquilo que o geógrafo Milton Santos definiu como Região Concentrada – a região mais moderna do Brasil, e mais integrada aos fluxos da globalização.
A conclusão é inevitável: favela é modernidade.
Favela não é sintoma de atraso, mas de progresso. Favela não é sinal de isolamento, mas de integração.
Na Rocinha, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) é bem mais alto que nos povoados do Sertão nordestino.
A visão corriqueira, segundo a qual os moradores de favelas são miseráveis, não combina com as informações censitárias.
É evidente que esses moradores, de modo geral, são pobres, mas há significativas diferenças de renda no interior das favelas e parte delas é constituída por famílias classificadas como de classe média. Nas favelas vende-se e compra-se moradias, mesmo não existindo títulos de propriedade.
Nelas, há “proprietários” que alugam diversas moradias. Há comerciantes que tocam pequenos negócios de relativo sucesso econômico. Há consumidores de produtos como TV a cabo, que adquirem planos especiais, muito baratos, como os vendidos pela empresa “TV Rocinha”, no Rio de Janeiro. E há até, claro que como exceções, “mansões” de traficantes de drogas.
Por que indivíduos com renda suficiente para adquirir um terreno e construir uma casa num loteamento popular optam por residir em favelas? O preço da terra é determinado, antes de tudo, pela localização do terreno. As localizações próximas aos centros comerciais e aos bairros residenciais de elite são mais caras, pois oferecem fácil acesso a empregos. As favelas surgem, principalmente, nessas áreas valorizadas ou nos seus arredores imediatos.
Residir na favela é uma estratégia econômica, que resulta do cálculo racional: as más condições de moradia são a contrapartida da proximidade das fontes de emprego e renda.
As favelas formam a “cidade ilegal”, a “cidade clandestina” que sequer aparece nos mapas urbanos. Algumas,  atualmente, como resultado das políticas municipais de “urbanização” de favelas, contam com serviços públicos como iluminação, calçamento, escolas e postos de saúde.
Sintomaticamente, porém, não contam com delegacias de polícia. No Rio de Janeiro, de tempos em tempos, a polícia “invade” favelas, como se fossem território estrangeiro, e trava tiroteios com gangues ligadas ao tráfico. Mas, nos “períodos normais”, a população das favelas permanece à mercê das gangues. Afinal, o negócio do narcotráfico interessa a muita gente poderosa.
Boletim Mundo n° 1 Ano 14

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