terça-feira, 27 de dezembro de 2011

FOME DE NADA

José Arbex Jr.

Com assustadora freqüência, a mídia relata casos de jovens – na maioria dos casos, meninas – que morrem por inanição. São vítimas da anorexia, um grave distúrbio de origem nervosa. Embora os sintomas da doença sejam óbvios – corpos esqueléticos, horror a ganhar peso, preocupação obsessiva com a imagem no espelho -, as suas causas são bem mais complexas, como indica o mero fato de o fenômeno ter atingido dimensões epidêmicas (alguns estudos chegam à cifra de 500 mil pacientes, apenas nos Estados Unidos). Não é fácil entender o processo social, cultural e psicológico que produz a anorexia, mas a discussão é necessária, por iluminar certos aspectos fundamentais do funcionamento do mundo contemporâneo.
De maneira excessivamente simples, a anorexia costuma ser descrita como “perda de apetite”, mas refere-se a algo bem mais complicado que isso, como sugere o desabafo de uma jovem paciente anoréxica, relatada pela psicanalista Célia Salles, no seu texto “Cisne – um caso feliz”:
“Não me importo, eu não quero TV, visitas, nada. Não é que eu não quero comer. Se tivesse um cardápio no qual estivesse escrito ‘nada’, eu pediria esta comida.” A anorexia é aqui descrita como a fome de... nada. Não se trata de uma atitude meramente negativa, de rejeição ao alimento, mas sim do desejo do vazio. Como explicar isso?
É claro que a anorexia não é uma “invenção” do mundo contemporâneo. Sigmund Freud trata do tema, o que demonstra sua existência no século XIX, além de referências encontradas em registros literários anteriores. A “novidade”, no caso, são as dimensões hoje atingidas pela anorexia. Elas parecem sugerir que, para além de uma doença tipicamente individual, o “mal estar na civilização” de que falava Freud estende seus tentáculos aos limites físicos do ser humano, para transformar-se no “mal estar no corpo”. A anorexia, de fato, fornece uma chave para quem queira compreender como uma sociedade regida pelo pânico inscreve suas marcas no indivíduo.
O “mundo globalizado” é marcado por uma uniformização cada vez maior da vida cotidiana. Os mesmos “rituais de mercado” são adotados em todas as partes do mundo, devidamente reforçados, a cada dia, por redes transnacionais de telecomunicações. Os mesmos filmes e seriados de TV, as mesmas roupas, as mesmas músicas podem ser consumidas em aproximadamente qualquer parte do planeta. As instituições fracassam em sua missão de assegurar a paz (a ONU tornou-se objeto de piada), as ideologias não significam mais nada. Não há, portanto, perspectiva de futuro. Resta o pânico (de ser assaltado e/ou seqüestrado, de doenças, de catástrofes ambientais, etc). Viver a vida resume-se a aproveitar as próximas 24 horas, se isso for possível.
A valorização máxima do tempo presente reduz a quase zero o mundo do pensamento (os projetos, as utopias, as construções do futuro) e eleva ao limite a consciência daquilo que é o mais presente para o ser humano: o seu próprio corpo. Este, precisamente, é o mecanismo que explica a imensa valorização da “forma física”: o “boom” das academias de ginástica, a explosão da indústria da moda e dos cosméticos, o investimento na própria imagem, o culto ao narcisismo consumista. Em síntese, o desejo de perfeição do próprio corpo tornou-se uma utopia possível no mundo destituído das utopias.
Mas o “corpo perfeito” da cultura contemporânea é o corpo eficiente, o corpo magro, espelhado na máquina. A tecnologia embutida nos aparelhos das academias de ginástica, empregada para simular pesos e  disciplinar posturas de corpo, é a mesma tecnologia utilizada na fabricação de armas e robôs, e nos experimentos espaciais. O corpo exemplar é o campeão olímpico, cuja performance é medida em décimos de milésimos de segundos, fração de tempo só perceptível por instrumentos de precisão.
A anorexia é uma contrapartida melancólica, por assim dizer, da ambição olímpica. É o corpo máquina que se entrega a uma lógica auto-destrutiva. A rejeição à comida não obedece a uma determinada estratégia (por exemplo, perder alguns quilos para melhorar a performance e vencer a prova), mas é um gesto que se esgota em si. No mundo que só tem a oferecer mais do mesmo, a anorexia é o desejo do nada.
Claro que cada vítima da anorexia tem uma história própria, única, um caminho específico que produziu sua tragédia particular. Em qualquer hipótese, sua ocorrência aos milhares demonstra que há algo de profundamente podre nisso que se chama globalização.

História e Cultura n° 2 Ano 3

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