quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

A SAÚDE DOS “NEGROS” É DIFERENTE?

Peter Fry

O capítulo 1 do Título II do Estatuto de Igualdade Racial versa sobre o direito à saúde. Começa encorajando os governos federais, municipais e estaduais a desenvolver ações e serviços em que sejam focalizadas as “peculiaridades” da população afro-brasileira.
Além disso, prevê a introdução obrigatória do quesito “raça/cor” em todos os documentos em uso no Sistema Único de Saúde (SUS). Em seguida, autoriza o Ministério da Saúde a “produzir, sistematicamente, estatísticas vitais e análises epidemiológicas da morbimortalidade por doenças geneticamente determinadas ou agravadas pelas condições de vida dos afro-brasileiros” e o Ministério da Educação a introduzir matérias relativas às especificidades da saúde da população afro-brasileira como temas transversais nos currículos dos cursos de saúde.
Finalmente, autoriza a implantação de um Programa de Agentes Comunitários de Saúde e o Programa de Saúde da Família em todas as comunidades de remanescentes de quilombos existentes no país e determina que os moradores das comunidades de remanescentes de quilombos “terão acesso preferencial aos processos seletivos para a constituição das equipes dos Programas”.
Sem explicitar quais seriam as doenças específicas aos negros, o Estatuto autoriza o Ministério da Saúde a definir as “doenças prevalentes na população afro-brasileira”. Resumindo: o Estatuto imagina um Brasil dividido entre duas populações, a dos “afro-brasileiros” e a dos “outros-brasileiros”, cada qual com as suas doenças e necessidades de saúde. No caso dos quilombos, prevê uma situação na qual os quilombolas cuidam da saúde dos próprios quilombolas, como se cada “raça” tivesse que cuidar de si.
Desde o final da Segunda Guerra Mundial, cresceu um consenso entre os cientistas que afirma que raças humanas não existem na natureza; são construções sociais. Inaugurou-se uma ciência libertadora. Não mais seria possível supor associações entre a “raça” das pessoas e sua inteligência, moralidade e outras capacidades. Pesquisas recentes, conduzidas por geneticistas brasileiros, confirmam a inutilidade do conceito de raça humana no sentido biológico e, como conseqüência, a sua total irrelevância para a medicina, sobretudo num país de tanta mistura genética como o Brasil. Sérgio Danilo Pena demonstrou que as aparências (que definem a “cor/raça” dos indivíduos no Brasil) são péssimos indicadores da ancestralidade genética. Por exemplo, a proporção de ancestralidade africana nos que se definem como brancos no Sudeste do Brasil  é 32% e a proporção de ancestralidade européia naqueles que se definem como pretos na mesma região é 49%. Como o genótipo dos indivíduos não corresponde ao seu fenótipo, fica evidente que a noção de “doenças raciais” simplesmente não tem sentido.
Vejamos o caso da anemia falciforme, que é muitas vezes chamada de “doença de negros”. Embora o Estatuto não defina as doenças “prevalentes na população afro-brasileira”, dedica um artigo inteiro às medidas  que deveriam ser adotadas para combater esta doença. Essa variedade de anemia é transmitida através de um gene recessivo (o traço falciforme), que originou-se  em quatro regiões da África e na Ásia Menor e Índia, onde a malária é endêmica. Como a cor clara dos olhos, só se manifesta quando o indivíduo herda o gene de ambos os pais. Com o passar do tempo, o gene saiu de suas áreas geográficos de origem  e se espalhou com a velocidade das relações sexuais produtivas entre pessoas de ancestralidade e aparência diversas. Atualmente, pode se manifestar em qualquer indivíduo cujo pai e mãe são portadores desse gene.
Não existindo nenhuma correlação entre a aparência das pessoas (a sua suposta “raça”) e a sua saúde (nem no caso da anemia falciforme), cabe perguntar o porque  do capítulo sobre saúde no Estatuto de Igualdade Racial.
Até 1995, “raça” no Brasil vivia na clandestinidade. Os cidadãos eram formalmente iguais perante a lei, independentemente da sua cor. O racismo era combatido como crime imprescritível e inafiançável. Naquele ano, porém, o governo inaugurou um Grupo de Trabalho Interministerial Para a Valorização e Promoção da População Negra e previu a implementação de “ações afirmativas” para, segundo o discurso oficial, reduzir as desigualdades sócio-econômicas de cunho “racial”. No governo Lula, foi criada a Secretaria Especial para a Promoção de Igualdade Racial (SEPPIR), e multiplicaram-se as “ações afirmativas”.
“Ações afirmativas” dividem a população entre os que tem direito a elas e os que não tem; entre os “negros” e “brancos”.
Como efetuar essa divisão entre brasileiros que têm como costume se definir e definir os outros a partir de um leque bastante rico de “identidades raciais”? O IBGE utiliza, para efeitos censitários, cinco categorias de “raça/cor”. No linguajar cotidiano aparecem centenas de termos, mais ou menos carinhosos ou pejorativos como moreno, mulato, branquinho, negão, branquelo, russo, cafuzo, sarará, escurinho, etc. Nas primeiras “ações afirmativas” nas universidades estaduais cariocas, adotou-se o principio de auto-declaração através do qual os próprios candidatos se declararam “negros” ou “brancos”. A Universidade de Brasília e a Universidade Federal do Paraná foram um passo além, criando comissões de especialistas que avaliaram as auto-atribuições, o que alguns autores têm denominado “tribunais raciais”.
É razoável supor que a associação entre “raça” e “saúde” veio no sentido de legitimar ainda mais um processo que divide os brasileiros em “negros” e “brancos” apenas, como se fossem duas “raças” distintas. Associar especificidades de saúde (que é concebida como algo natural) à “população afro-brasileira” representa uma poderosa ferramenta no processo da naturalização da “raça negra” (por oposição lógica e política à “raça” branca).
Afinal, a constatação da existência de “peculiaridades” de saúde entre os negros passa a mensagem de que há, na natureza, duas raças humanas, cada qual com a sua constituição física distinta.
O capítulo sobre saúde no Estatuto de Igualdade Racial só pode ser interpretado como uma ação política cuja conseqüência será de refutar a negação científica das raças humanas, introduzindo práticas que tendem a fortalecer a crença em raças distintas, como a obrigação de declaração de “raça” em todos os contatos dos cidadãos com o sistema de saúde. É, no fim das contas, uma verdadeira pedagogia racial.

Boletim Mundo n° 1 Ano 14

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