terça-feira, 27 de dezembro de 2011

TOM, 80

Luciana Worms e Wellington Borges Costa

Já ao final do governo Médici, os “anos de chumbo” – pós AI-5, tortura institucionalizada, exilados, censura – quando Toquinho e Vinícius de Morais remeteram a Carta ao Tom 74, revisitavam  os chamados “anos dourados”.
A virada dos anos 50 para os 60, raro intervalo democrático no século passado, é mesmo especial na história da república do Brasil. Jamais o nome do país fora tão escrito com “Z” ... Em assinaturas como as de Pelé e Mané, nas conquistas das Copas do Mundo de futebol em 58, na Suécia e 62, no Chile; Maria Esther Bueno, bicampeã em Wimbledon e títulos em todos os torneios do grand slam do tênis, do saibro à grama; Anselmo Duarte, Palma de Ouro no festival de cinema de Cannes (França) – além de indicação ao Oscar – com o filme O pagador de promessas (texto de Dias Gomes)... entre outras façanhas nacionais.
Quando se pensa na assinatura da trilha sonora desse período de ampla inserção do Brasil no mundo, o principal nome brasileiro é Brasileiro. Antonio Brasileiro, Tom Jobim. O maestro soberano é sem dúvida das mais importantes personagens consolidadoras da brasilidade.
Pós-guerra, pré-bossa – A música de “fossa” estava vivendo seu auge no início dos anos 50. O pós-guerra deixou cicatrizes em toda a produção cultural mundial.
Não surpreendem as letras doloridas em vozes chorosas que invadiam o rádio. Dezenas de milhões de mortos.
Bombas do Japão. Europa dividida e arrasada. O Brasil não estava indiferente. Sofria com “dor de cotovelo”. E também houve motivos nacionais para a tristeza.
Em 1952, o “Rei da voz”, Francisco Alves (Chico Viola), morreu em um acidente de automóvel; em 1954, Getúlio Vargas se suicidou e causou grande comoção nacional; em 1955, Carmem Miranda faleceu em Los Angeles.
O Brasil estava triste. Contribui para essa tristeza a perda da Copa do Mundo de futebol, na inauguração do Maracanã em 1950. Foi um dos maiores traumas da história da cultura popular brasileira. A auto-estima estava baixíssima, a ponto de o jornalista, escritor e dramaturgo Nélson Rodrigues ter dito que éramos, perante o resto do mundo, acometidos de uma “síndrome de vira-latas”.
A alegria esteve confinada aos quatro dias de carnaval.
Ao longo do resto do ano, o que se ouvia nas rádios era um trágico festival de amores desfeitos, traições, sede de vingança, desilusões. Toda a poesia das canções estava carregada de uma atmosfera spleen ultra-romântica. Nota-se no ritmo algo do bolero hispano-americano. Era o samba-canção.
O ambiente de gestação dessa música era noturno.
Principalmente as boates de Copacabana. E por elas, para ganhar a vida, peregrinava o jovem pianista. Tom Jobim, contudo, promoveu uma guinada de horários e conseguiu trocar a noite pelo dia, ainda vivendo de música.
Trabalhou em editoras, estações de rádio, gravadoras.
Alem de pianista, arranjador e diretor artístico, mais do que tudo, Tom Jobim era compositor. Foi parceiro de uma das maiores estrelas dessa música enfumaçada, Dolores Duran. E Ruy Castro notou os proféticos e emblemáticos últimos versos de uma dessas parcerias: “Me dê a mão, vamos sair pra ver o sol”.
Em 1954 essa busca pelo sol gerou duas importantes obras, em parceria com Billy Blanco, a Sinfonia do Rio de Janeiro, cujas letras visitam paisagens da natureza exuberante da cidade maravilhosa e Tereza da Praia, o primeiro sucesso, que reuniu as vozes de dois cantores rivais, Lúcio Alves e Dick Farney, muito populares à época.
Assim como Villa-Lobos, Tom Jobim sempre se situou na fronteira do erudito com o popular e sua obra procura uma fusão entre os dois. Exemplo disso foi a aproximação com o poeta e diplomata Vinícius de Morais, em Orfeu do carnaval. Adaptação da tragédia grega ao cenário carioca.
Brasil exportação – Uma das canções que acabou não sendo aproveitada na peça foi uma experiência de Tom Jobim com o choro em que Vinícius pôs letra. A canção ficou engavetada um ano até que João Gilberto apareceu com seu violão Diante daquela batida seca que simplificava ao extremo o samba, Tom percebeu as possibilidades para as harmonias complicadas que estava inventando. Lembrou-se da canção engavetada que viria a ser gravada em dois discos históricos de 1958. O primeiro é o LP Canção do amor demais com todas as composições de Tom e Vinícius, na voz de Elizeth Cardoso. O segundo seria um 78 rpm de João Gilberto. A letra decreta o fim da tristeza, o fim da “fossa”. A precisão no casamento entre melodia e poesia, uma característica das composições de Tom, confirma esse decreto: a harmonia ao longo da primeira estrofe é em tom menor, o que realça o tema da tristeza. A partir da segunda estrofe, com a conjunção adversativa “Mas”, ocorre uma reviravolta na letra. Instala-se a alegria. A harmonia, então, se dá em tom maior e reforça a oposição e a mudança de clima com predomínio da alegria sobre a tristeza.
Newton Mendonça e a metalinguagem – Estava iniciada a profunda mudança na música brasileira que iria ganhar o mundo inteiro. Duas canções que João Gilberto viria a gravar podem ser entendidas como verdadeiros manifestos da estética da bossa nova. Trata-se das metalingüísticas Desafinado e Samba de uma nota só. Casamento perfeito entre letra e música, compostas por uma parceria igualmente perfeita: Tom Jobim e Newton Mendonça.
Amigos de infância, grandes pianistas. Ambos compunham letra e música revezando-se à caneta e ao piano.
Divertiam-se muito compondo. Newton Mendonça não conseguiu, como Tom, abandonar o trabalho noturno e isso certamente contribuiu para sua morte precoce.
Canção do amor demais foi o primeiro disco de bossa nova, termo que se transformou em gíria para designar tudo que fosse bom, agradável, belo.
As canções são respostas a críticas que a bossa nova recebeu pelo que apresentava de novo. Desafinado  é uma armadilha vocal que rebate o incômodo pelo cantar revolucionário de João e Samba de uma nota só responde aos que acusavam a bossa de ter “muita nota e pouca música”.
Tom poeta
Diferentemente do que os detratores nacionalistas diziam sobre a bossa nova ser mais uma imitação brasileira da música vinda dos EUA, a música popular do mundo inteiro parou para ouvir a bossa nova e por ela foi influenciada.
O compositor brasileiro realmente incorporou alguns elementos norte-americanos mas os traduziu, antropofagicamente, em algo nosso. As requintadas harmonias, o sofisticado balanço e a voz delicada foram incorporados na música dos Estados Unidos e da Europa, com a maciça absorção de artistas brasileiros. O ápice desse movimento foi um telefonema em 1967. Tom bebia chope no legendário Bar Veloso (hoje Garota de Ipanema) e recebeu um surpreendente telefonema do maior cantor do mundo à época, Frank Sinatra. Iniciou-se uma parceria.
Discos e shows e a voz de Sinatra em canções de Jobim definitivamente o consagrariam mundialmente.
Além da linguagem musical, Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim nutriu especial apreço pelas letras.
Na versão para o inglês de Garota de Ipanema, Norman Gimble recusava-se a incluir a palavra “Ipanema” na letra. Tom exigiu a palavra na letra e o título Girl from Ipanema. O espírito da praia carioca espalhou-se pelo mundo e, com ele, “Ipanema” em diversos idiomas.
Além das parcerias, Tom Jobim compôs inúmeros clássicos sozinho, melodia e letra. Samba do avião, Fotografia, Wave, Triste, Lígia, Chovendo na roseira, Águas de março, Gabriela (trilha do filme) e tantos outros belíssimos poemas.
Há uma curiosa história sobre um verso de Vinícius, que ele não assina. Tom Jobim foi lhe mostrar Corcovado, em que é autor de letra e melodia. Vinícius, ao final, após ouvir que “da janela vê-se o Corcovado, o Redentor”, não se conteve: “Que lindo!” e Tom acabou incorporando a exclamação à letra da canção.
1967 marca também o início de uma fértil parceria do maestro com o jovem compositor Chico Buarque, com Retrato em branco e preto. A esta se seguiram várias outras, como a polêmica Sabiá que, sob protestos dos adeptos da música de protesto, venceu o Festival Internacional da Canção, em 1968, deixando em 2º lugar o protesto mais explícito de Pra não dizer que não falei das flores (Caminhando), de Geraldo Vandré.
Helena Jobim, escritora e irmã do maestro, convidou  Chico Buarque para escrever o prefácio de Antonio Carlos Jobim, um homem iluminado (Ed. Nova Fronteira). Chico, em lugar de texto, reuniu em CD alguns engraçados encontros musicais entre os dois, em que o maestro mostrava ao piano melodias para que Chico escrevesse as letras.
A audição é emocionante, pois se percebem inteiras, prontas, canções como Anos dourados ou Eu te amo, cujas frases melódicas Chico tão bem cobriu de redondilhas.
Com certo atraso característico. Anos dourados, por exemplo, era encomenda na TV Globo para servir de trilha a minissérie homônima. A letra não foi ouvida ao longo dos capítulos, pois só ficou pronta mais tarde, apenas para constar do disco.
No CD-prefácio do livro de Helena Jobim, ouve-se a melodia de Luiza. Provavelmente Tom queria que Chico compusesse a letra. E, provavelmente, diante do atraso do amigo, ele mesmo assina a belíssima peça, prova definitiva de sua excelência poética.

A flora e a fauna na partitura – A histórica Sabiá marca também o início da chamada fase ecológica de Tom Jobim. Outros pássaros vieram: Matita-perê, Urubu,Passarim, trazendo canções inspiradas ou voltadas para a natureza: Chovendo na Roseira, Tempo do Mar, Rancho nas Nuvens, Nuvens Douradas, Boto, Correnteza.
As últimas obras da fase madura de Tom Jobim não deixam dúvidas de que ele encampou a bandeira de Villa- Lobos na mescla do erudito com o popular e na busca da nacionalidade brasileira voltando-se para a natureza e para elementos folclóricos.
Na verdade, o amor à natureza sempre acompanhou Tom Jobim. E era um tema sublime na bossa nova, especialmente o mar. Mas com o regime militar foi abandonado por muitos pois visto como alienante. Essa, porém, continuou sendo sua luta. E muito antes de se falar em consciência ecológica, impacto ambiental, partidos verdes, greenpeaces e que tais, antecipando a agenda da virada do século.
Águas de março é considerada por muitos a mais importante canção brasileira. E há quem a considere do mundo, com a rigorosa versão em inglês, também de autoria de Tom.
Em seu discurso de renúncia, em 1945, Getúlio Vargas se vangloriou por “mobilizar para o engrandecimento comum as forças criadoras da nacionalidade”. Pois bem, o sentimento nacional brasileiro pode ter começado com Getúlio. Mas foi com Tom Jobim que se livrou da “síndrome de vira-latas”. E como bem disse Caetano na letra de Cinema Novo: “a bossa nova passou na prova/ nos salvou na dimensão da eternidade”. A Antonio Brasileiro seremos sempre gratos!
E só pra finalizar com o bom humor que sempre pautou os encontros de Chico Buarque e Tom. A resposta que os dois deram, em tempos de protestos, à carta de Toquinho e Vinícius do início deste texto também foi um protesto. Protesto de Tom Jobim: ecológico. Contra a especulação imobiliária que agredia a beleza natural da sua cidade. Canção de 1977.

História e Cultura n° 1 Ano 3

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