sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

“PONTO DE CULTURA” FLUTUA NA AMAZÔNIA

Gilson Schwartz

Quem foi o ministro da Cultura do governo FHC? Quem ocupa a pasta no governo Lula? Quem gastou mais em cultura, FHC ou Lula? Aposto que você não lembra quem cuidava da cultura brasileira no governo anterior. E muito provavelmente estará careca de saber quem é o ministro da Cultura do governo Lula...
Francisco Correa Weffort foi o titular da pasta por oito anos entre 1995 e 2002. O cientista político e professor da USP gastou mais em cultura nos três anos finais da “era FHC” que o músico e militante do Partido Verde Gilberto Gil nos seus três anos à frente do MinC.
A retração de gastos na área cultural no governo Lula foi de 6,5% em relação ao governo FHC, em valores atualizados pelo Índice Geral de Preços (IGP) da Fundação Getúlio Vargas. Se a conta ficar apenas nos investimentos e gastos com pessoal e encargos sociais, as quedas foram de 25% e 18%, respectivamente (confira no site Contas Abertas, em  http://contasabertas.uol.com.br).
Além de contar com um titular que é campeão de visibilidade e polêmicas, o Ministério da Cultura no governo Lula teria feito uma opção por investimentos mais descentralizados. Segundo a representante do Fórum de Culturas Populares Indígenas e Patrimônio Imaterial do Rio de Janeiro, Joana Ortiga Correa, os recursos “foram distribuídos de forma mais justa” pois no governo FHC “as entidades pequenas não tinham acesso aos recursos do governo” e no governo Lula “foram abertos mais editais”. O carro chefe dessa opção por gastar com melhor distribuição é o programa Cultura Viva, mais conhecido pelos “Pontos de Cultura”: segundo o governo, já são 450 os pontos que receberam apoio para realizar produções. Entre os pontos de cultura, tive a oportunidade de visitar um  dos mais originais: um ponto flutuante, a bordo do projeto Navegar Amazônia (www.navegaramazonia.org.br).
Dirigido pelo cineasta Jorge Bodanzky, esse “ponto” é uma embarcação regional típica, adaptada para abrigar um tele centro.
O projeto já existia com apoio financeiro do governo estadual do Amapá, mas ficou parado com a troca de administração.
O atual secretário do Audiovisual do Ministério da Cultura, Orlando Senna, dirigiu com Bodanzky um clássico entre os documentários brasileiros: “Iracema – a Transa Amazônica” (1974). Proibido durante a ditadura, o longa só começou a ser exibido no Brasil em 1980, quando venceu o Festival de Brasília. Foi lançado em DVD em 2001.
Durante uma semana, convivi com o cineasta e sua equipe, navegando de Belém do Pará até o município de Abaetetuba.
Além de professores, fotógrafos, web designers e técnicos, também estavam a bordo os músicos Jorge Mautner e Nelson Jacobina.
A partir do encontro com escolas e comunidades ribeirinhas, o Navegar Amazônia cumpre a missão estabelecida pelo programa de pontos de cultura do MinC: ajuda a tecer uma “rede horizontal de articulação, recepção e disseminação de iniciativas e vontades criadoras”, atuando como “um mediador na relação entre Estado e sociedade” e agregando “agentes culturais que articulam e impulsionam um conjunto de ações em suas comunidades e destas entre si”. Em abril, na Bienal de São Paulo, houve o primeiro encontro mostrando resultados desse programa, com centenas  de apresentações, exposições, documentários e oficinas realizadas por comunidades de todo o país. Formou-se então a “Teia – Rede de Cultura do Brasil” (http://www.teiacultural.org/index.html).
Aliás, o enfoque descentralizado, valorizando a produção cultural de comunidades locais chegou também à Rede Globo – a atração mais recente apresentada pela atriz Regina Case é o “Central da Periferia” que, servindo-se da consultoria do antropólogo Hermano Vianna, irmão do Paralama Herbert Vianna, corre atrás do mesmíssimo objetivo: valorizar o “local”, numa época de referências culturais globais e pasteurizadas. No programa do MinC, cada “Ponto de Cultura” recebe até R$ 150 mil e um “kit” de produção multimídia com computadores, internet banda larga, ilha de edição e estúdio de gravação para o registro dos seus trabalhos.
Especialmente tocante foi a convivência com Jorge Mautner. Seu pai era judeu nascido na Áustria, assim como a mãe (que não era judia). Fugiram da perseguição nazista em 1941, para o Brasil. Um mês depois, Mautner nascia no Rio de Janeiro. Ele se considera um “filho do Holocausto”.
Tivemos longas conversas no convés, absolutamente encantados pela enormidade amazônica, pelas possibilidades de transformação material e imaterial do mundo  a partir da riqueza cultural que o barco ia (re)descobrindo.
No contato com as comunidades ribeirinhas, Jorge Mautner e seu parceiro Nelson Jacobina, o cineasta Evaldo Mocarzel, o fotógrafo Mario Miranda e o professor de arte Dario Chiaverini promoviam oficinas, encontros com artistas locais, discussões com autoridades municipais, comunhão com lideranças de áreas remanescentes de quilombos – uma surpresa no meio da mata, escondida entre riachos e igarapés.
Carimbó, ladainhas, pontos de candomblé, imagens em barcos, desenhos de crianças, brinquedos de miriti, o açaí, as tirações de reis... O ponto flutuante, a rigor, ativa muitos pontos, confirma os mistérios da mata e, ao mesmo tempo, revela o risco de extinção da identidade cultural local em aglomerações urbanas como Abaetetuba, onde ficamos ancorados e de onde partíamos em pequenas expedições a bordo de finíssimas e ágeis “rabetas” (embarcação com motor de popa, longa, usada para trajetos curtos na região).
Haverá outros ministros da Cultura, outros Presidentes, outras políticas de desenvolvimento cultural. Como já se viu tantas vezes no país, mudarão os nomes, os programas, as “autoridades”.
A viagem a bordo de um “Ponto de Cultura” flutuante confirmou, no entanto, que se o povo brasileiro teria muito a ganhar com uma valorização maior de sua cultura local pela elite urbana e globalizada, ao mesmo tempo sua força macunaímica é capaz de ir além dos mandatos e das verbas oficiais.

Boletim Mundo n° 3 Ano 14

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