quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

RATZINGER E A HISTÓRIA DE “NUESTRA AMÉRICA”

José Arbex Jr

Duas afirmações recentes defendidas pela papa Bento XVI (Joseph Ratzinger) causaram grande polêmica mundial.
Na declaração do Vaticano Dominus Iesus (Senhor Jesus), publicada em 10 de julho, Ratzinger afirma que o catolicismo é a única religião verdadeira, e que apenas na Igreja Católica “subsiste a Igreja de Cristo”. A segunda declaração, feita em 13 de maio, durante a sua visita ao Brasil, na abertura da 5ª Celam (Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano), diz que nunca houve a imposição do catolicismo aos povos originários das Américas (pré-colombianos), os quais, intuitivamente, buscavam a “fé verdadeira” contida nos ensinamentos de Cristo.
Não se trata aqui, em absoluto, de discutir questões relativas à fé, mas sim de construir o quadro mais geral de referências em cujo contexto se dá a polêmica.
A Dominus Iesus reitera as teses desenvolvidas em um documento da Congregação para a Doutrina da Fé, de 5 de setembro de 2000, escrito pelo próprio Ratzinger e, à época, aprovado pelo papa João Paulo II. Como dizem os seus críticos, incluindo os teólogos Hans Küng, Leonardo Boff e Jon Sobrinho, as teses refletem uma visão do mundo e do catolicismo fechada em si mesma, conservadora e tradicionalista.
Nesse sentido, elas vão na contra-mão do espírito do Concílio Vaticano II, convocado pelo papa João XXIII e realizado entre 1962 e 1965. O Concílio (assembléia de religiosos) teve o significado de uma grande reforma da Igreja Católica, que abriu as portas para uma aproximação maior com o mundo e passou a tratar de problemas sociais até então ignorados. Isso permitiu, entre outras coisas, o surgimento da Teologia da Libertação (mais conhecida pelo seu lema: “opção preferencial pelos pobres”), repudiada por João Paulo II e por Bento XVI.
Coerentemente, as afirmações de Bento XVI na Celam reiteram a mesma visão de uma Igreja Católica absolutamente auto-centrada e pouco disposta ao diálogo com outras vertentes religiosas. O seu discurso pode ser lido numa dupla chave: ao mesmo tempo em que afirma a supremacia do catolicismo sobre outras manifestações religiosas, também faz um ataque direto, ainda que não explicitado, à Teologia da Libertação:
“A utopia de voltar a dar vida às religiões pré colombinas, separando-as de Cristo e da Igreja Católica, não seria um progresso, mas um retrocesso. Na realidade, seria uma involução a um momento histórico ancorado no passado. A sabedoria dos povos originários os levou, afortunadamente, a fazer uma síntese entre as suas culturas e a fé cristã que os missionários lhes ofereciam.
Daí nasceu a rica e profunda religiosidade popular, na qual aparece a alma dos povos latino-americanos.”
A Teologia da Libertação propõe, ao contrário, a interlocução entre o catolicismo e as religiões dos povos originários. Aposta no renascimento de seus valores religiosos, culturais e morais como uma forma de dignificar as nações que foram oprimidas durante séculos pelo colonizador europeu. Ao comentar o discurso de Ratzinger, a Confederação dos Povos de Nacionalidade Quetchua do Equador afirmou:
“Seguramente, o papa ignora que os representantes da Igreja Católica, com honrosas exceções, foram cúmplices, encobridores e beneficiários de um dos genocídios mais horrorosos que a humanidade já presenciou (...). As igrejas cristãs, e particularmente a Igreja Católica, têm uma imensa dívida com Cristo, com os pobres do mundo e com os Povos e Nações Indígenas que resistiram a tal barbárie. Ainda que o Estado espanhol e o Vaticano não tenham como pagar pelas conseqüências do monstruoso genocídio, o chefe da Igreja Católica deveria, ao menos, reconhecer o erro cometido, como fez seu antecessor, João Paulo II, em relação ao Holocausto nazista.”
Mas, se é impossível sustentar a versão de que o catolicismo não foi manchado pelo sangue dos povos originários, tampouco pode-se afirmar que a ação dos religiosos missionários tenha sempre sido idêntica à dos colonizadores espanhóis e portugueses. Houve, mesmo, situações de conflito uns e outros.
No início do século XVI, o Vaticano advertia os colonizadores contra a prática de escravizar os povos originários.
Uma bula papal de 1537 proclamava, explicitamente, a liberdade dos índios das Américas A estratégia católica era voltada para a criação de uma grande nação indígena cristã, claro que sob total controle da Companhia de Jesus, ampliando com isso o poder da Igreja Católica, abalado, na Europa, pela reforma luterana, junto às monarquias.
Os jesuítas pretendiam, também, desenvolver uma política que transformasse o índio num ser dócil e produtivo, organizados em aldeamentos e “reduções”. Em conformidade com essa estratégia, o jesuíta José de Anchieta escreveu em 1595 sua Arte de Gramática da Língua mais Usada na Costa do Brasil, o tupi. Foi a primeira tentativa de construir uma sistematização literária de uma linguagem indígena.
Assim, a diferença de atitude em relação aos indígenas, se produziu vários conflitos entre colonos e jesuítas, não significa que os religiosos estivessem dispostos a lutar contra a selvageria dos colonizadores. A divergência dava-se no plano das estratégias de poder.

História e Cultura n° 4 Ano 3

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