Duas afirmações recentes defendidas pela papa Bento XVI (Joseph Ratzinger) causaram grande polêmica mundial.
Na declaração do Vaticano Dominus Iesus (Senhor Jesus), publicada em 10 de julho, Ratzinger afirma que o catolicismo é a única religião verdadeira, e que apenas na Igreja Católica “subsiste a Igreja de Cristo”. A segunda declaração, feita em 13 de maio, durante a sua visita ao Brasil, na abertura da 5ª Celam (Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano), diz que nunca houve a imposição do catolicismo aos povos originários das Américas (pré-colombianos), os quais, intuitivamente, buscavam a “fé verdadeira” contida nos ensinamentos de Cristo.Não se trata aqui, em absoluto, de discutir questões relativas à fé, mas sim de construir o quadro mais geral de referências em cujo contexto se dá a polêmica.
A Dominus Iesus reitera as teses desenvolvidas em um documento da Congregação para a Doutrina da Fé, de 5 de setembro de 2000, escrito pelo próprio Ratzinger e, à época, aprovado pelo papa João Paulo II. Como dizem os seus críticos, incluindo os teólogos Hans Küng, Leonardo Boff e Jon Sobrinho, as teses refletem uma visão do mundo e do catolicismo fechada em si mesma, conservadora e tradicionalista.
Nesse sentido, elas vão na contra-mão do espírito do Concílio Vaticano II, convocado pelo papa João XXIII e realizado entre 1962 e 1965. O Concílio (assembléia de religiosos) teve o significado de uma grande reforma da Igreja Católica, que abriu as portas para uma aproximação maior com o mundo e passou a tratar de problemas sociais até então ignorados. Isso permitiu, entre outras coisas, o surgimento da Teologia da Libertação (mais conhecida pelo seu lema: “opção preferencial pelos pobres”), repudiada por João Paulo II e por Bento XVI.
Coerentemente, as afirmações de Bento XVI na Celam reiteram a mesma visão de uma Igreja Católica absolutamente auto-centrada e pouco disposta ao diálogo com outras vertentes religiosas. O seu discurso pode ser lido numa dupla chave: ao mesmo tempo em que afirma a supremacia do catolicismo sobre outras manifestações religiosas, também faz um ataque direto, ainda que não explicitado, à Teologia da Libertação:
“A utopia de voltar a dar vida às religiões pré colombinas, separando-as de Cristo e da Igreja Católica, não seria um progresso, mas um retrocesso. Na realidade, seria uma involução a um momento histórico ancorado no passado. A sabedoria dos povos originários os levou, afortunadamente, a fazer uma síntese entre as suas culturas e a fé cristã que os missionários lhes ofereciam.
Daí nasceu a rica e profunda religiosidade popular, na qual aparece a alma dos povos latino-americanos.”
A Teologia da Libertação propõe, ao contrário, a interlocução entre o catolicismo e as religiões dos povos originários. Aposta no renascimento de seus valores religiosos, culturais e morais como uma forma de dignificar as nações que foram oprimidas durante séculos pelo colonizador europeu. Ao comentar o discurso de Ratzinger, a Confederação dos Povos de Nacionalidade Quetchua do Equador afirmou:
“Seguramente, o papa ignora que os representantes da Igreja Católica, com honrosas exceções, foram cúmplices, encobridores e beneficiários de um dos genocídios mais horrorosos que a humanidade já presenciou (...). As igrejas cristãs, e particularmente a Igreja Católica, têm uma imensa dívida com Cristo, com os pobres do mundo e com os Povos e Nações Indígenas que resistiram a tal barbárie. Ainda que o Estado espanhol e o Vaticano não tenham como pagar pelas conseqüências do monstruoso genocídio, o chefe da Igreja Católica deveria, ao menos, reconhecer o erro cometido, como fez seu antecessor, João Paulo II, em relação ao Holocausto nazista.”
Mas, se é impossível sustentar a versão de que o catolicismo não foi manchado pelo sangue dos povos originários, tampouco pode-se afirmar que a ação dos religiosos missionários tenha sempre sido idêntica à dos colonizadores espanhóis e portugueses. Houve, mesmo, situações de conflito uns e outros.
No início do século XVI, o Vaticano advertia os colonizadores contra a prática de escravizar os povos originários.
Uma bula papal de 1537 proclamava, explicitamente, a liberdade dos índios das Américas A estratégia católica era voltada para a criação de uma grande nação indígena cristã, claro que sob total controle da Companhia de Jesus, ampliando com isso o poder da Igreja Católica, abalado, na Europa, pela reforma luterana, junto às monarquias.
Os jesuítas pretendiam, também, desenvolver uma política que transformasse o índio num ser dócil e produtivo, organizados em aldeamentos e “reduções”. Em conformidade com essa estratégia, o jesuíta José de Anchieta escreveu em 1595 sua Arte de Gramática da Língua mais Usada na Costa do Brasil, o tupi. Foi a primeira tentativa de construir uma sistematização literária de uma linguagem indígena.
Assim, a diferença de atitude em relação aos indígenas, se produziu vários conflitos entre colonos e jesuítas, não significa que os religiosos estivessem dispostos a lutar contra a selvageria dos colonizadores. A divergência dava-se no plano das estratégias de poder.
História e Cultura n° 4 Ano 3
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