Há três décadas, os Estados Unidos não vendiam combustível nuclear e componentes de reator aos indianos, por força de uma moratória que foi encerrada durante a visita de Bush. Os indianos prometeram abrir, pela primeira vez, as suas instalações civis (14 dos 22 reatores nucleares existentes no país) a inspeções internacionais.
Os outros reatores permanecerão como instalações militares e não estarão sujeitos a inspeções.
Como conseqüência, a Índia passa a ser reconhecida como potência nuclear, estatuto apenas conferido aos cinco integrantes do Conselho de Segurança (CS) da ONU.
O vizinho Paquistão, com quem a Índia mantém uma disputa pela posse da Cachemira, continua sendo potência nuclear “ilegal” (por ter realizado testes nucleares), ao passo que Israel e a Coréia do Norte são potências nucleares “clandestinas” (por nunca terem realizado testes).
Em contraste, a Casa Branca ataca violentamente o programa de enriquecimento do urânio do Irã. Por iniciativa do próprio Bush, a “questão iraniana” foi levada ao CS, que, no limite, pode recorrer a uma intervenção militar internacional para impedir o prosseguimento de seu programa nuclear. Mesmo que essa hipótese seja pouco provável na atual conjuntura mundial, a pressão sobre o Irã aumenta as tensões internacionais.
Em Washington, Bush terá de enfrentar uma árdua batalha para passar a sua aprovação no Congresso. A razão é óbvia: o “tratamento especial” oferecido à Índia dá novos argumentos à Coréia do Norte e ao Irã, cria uma área de atrito com o aliado Paquistão e, sobretudo, provoca a China, que mantém com a Índia uma relação histórica de tensão regional. O programa nuclear indiano foi iniciado como uma resposta à derrota sofrida pelo país na guerra de fronteira travada com a China em 1962.
Como explicar, então, a atitude de Bush, apesar de todos os inconvenientes? Trata-se, precisamente, da disputa entre Estados Unidos e China, considerada a grande rival do século XXI pelos estrategistas neoconservadores da Casa Branca.
Durante os anos da Guerra Fria – a confrontação global entre Estados Unidos e União Soviética – a aproximação entre Washington e Pequim correspondeu a uma tentativa de isolar Moscou e dividir o chamado “movimento comunista internacional”. Com o fim da Guerra Fria e da “ameaça soviética”, essa política perdeu o sentido. Houve um óbvio rearranjo no mapa mundial do poder.
Para a equipe neoconservadora, a China passa a ser a ameaça potencialmente mais perigosa à hegemonia mundial dos Estados Unidos. O cálculo é simples: se a economia chinesa continuar a crescer no ritmo atual (mais de 9% ao ano), em duas décadas o seu PIB será equiparado ao dos Estados Unidos, o que lhe permitirá uma capacitação militar equivalente.
Como potência asiática, a China pretenderia disputar o controle sobre a Eurásia, região chave no século XXI, por abrigar 75% da população mundial, produzir 60% do PIB planetário, conter a maior parte dos recursos naturais do planeta, incluindo 75% de suas reservas conhecidas de energia, e concentrar o poder nuclear (os Estados Unidos são a única potência nuclear que não faz parte da Eurásia).
O petróleo, obviamente, ocupa um lugar central na disputa, ainda mais por ser a China extremamente dependente de sua importação para sustentar o crescimento da economia. Além das já conhecidas reservas situadas no Oriente Médio, os cinco países da bacia do Cáspio Azerbaijão, Cazaquistão, Irã, Rússia e Turcomenistão – possuem reservas estimadas de até 200 bilhões de barris de petróleo e um volume comparável de gás.
As cinco maiores empresas petrolíferas dos Estados Unidos (Chevron, Conoco, Texaco, Mobil Oil e Unocal) concluíram uma série de acordos bilionários com esses países (exceto o Irã) para explorar essas reservas. É também o petróleo que explica os interesses em jogo na guerra da Rússia com a Chechênia. Por ali passam fontes e linhas de abastecimento de petróleo e gás iranianos e da bacia do mar Cáspio.
Seguindo a lógica da “conquista da Eurásia”, o Senado dos Estados Unidos aprovou em 1997 a resolução conhecida como “Estratégia da Rota da Seda” (alusão às viagens o veneziano Marco Polo, 1254-1324), segundo a qual o país deveria “ampliar a sua presença” na bacia do Cáspio, à medida em que são construídos novos oleodutos entre o Oriente e o Ocidente através daquela região. O atentado de 11 de setembro de 2001 ofereceu a Bush as condições políticas para uma intervenção em grande escala naquela região.
A estratégia americana desenha um anel em torno da Rússia, ao redor da bacia do Cáspio e agora cria um “cordão sanitário” em torno da China. Não por acaso, os Estados Unidos propõem que, junto com o Japão, a Índia passe a integrar o CS em caráter permanente. É claro que o clima de pânico anti-chinês é muito exagerado, como era, durante a Guerra Fria, o terror artificialmente criado contra a “invasão vermelha”. Primeiro, porque grande parte do sucesso comercial chinês deve-se à atuação de corporações americanas instaladas no país. Segundo, porque longe de ser um “monstro”, a China ajuda a financiar a economia deficitária americana (já que os chineses compram dezenas de bilhões de dólares de títulos do Tesouro americano). Finalmente, a China funciona como potência estabilizadora na Ásia, em especial no que se refere a conter as tendências mais radicais da Coréia do Norte.
Mas um clima de pânico é bom para os negócios da indústria armamentista e de tecnologia de ponta – justamente os setores que financiaram as campanhas de George Bush.
Boletim Mundo n° 2 Ano 14
Nenhum comentário:
Postar um comentário