Seis décadas após a “última cruzada ibérica”, eleições atestam o peso do passado e a força da tradição na democracia espanhola
Elaine Senise Barbosa
Há 60 anos, a Guerra Civil Espanhola (1936-39) incendiava a Península Ibérica. O regime republicano, que derrubara a monarquia, não conseguiu impedir que o federalismo implodisse a unidade territorial. O conflito dividiu o país e terminou com a implantação de uma ditadura pelo generalíssimo Francisco Franco (1939-75), que resgatou a integridade do Estado e restaurou a monarquia. Hoje, democratizada, a Espanha ainda exorciza o fantasma da Guerra Civil.
As explicações para a Guerra Civil podem ser agrupadas em duas vertentes.
Para a primeira, a Guerra foi um “ensaio geral” da Segunda Guerra que se aproximava.
A Espanha dividira-se politicamente: de um lado, a Frente Popular, composta pelos partidos republicano, socialista e comunista, e apoiada pelos anarquistas; de outro, a Falange, representante das forças ligadas à Igreja, da aristocracia encastelada no Exército e dos monarquistas. A FP, democraticamente eleita, propunha a reforma agrária, a laicização do Estado e a concessão de direitos políticos às províncias autonomistas (Catalunha, País Basco e Galícia). Contra isso, a Falange iniciou um levante armado, em julho de 1936.
Franco obteve o apoio de Mussolini e Hitler, que aproveitaram para testar as novas armas que planejavam utilizar em outras guerras. Em março de 1937, a cidade basca de Guernica foi destruída pelo bombardeio aéreo das esquadras italiana e espanhola. Em abril de 1939, Franco tomava o poder num país devastado. Em setembro, eclodia a Segunda Guerra.
Essa interpretação suscita algumas questões: por que a Espanha franquista permaneceu neutra durante o conflito mundial ao invés de integrar-se ao Eixo? Por que os vitoriosos aliados não promoveram a derrubada de Franco, convivendo com o ditador até sua morte? As respostas só podem ser encontradas olhando a Guerra Civil por um outro ângulo, que revela o principal: o franquismo foi, antes de tudo, um fenômeno espanhol.
Esta é a outra vertente de interpretação: a Guerra Civil foi a expressão de poderosas correntes subterrâneas do passado.
De um lado, os influxos de modernização sempre estiveram associados aos “estrangeirismos” -a brilhante cultura árabe na Idade Média, as práticas capitalistas mais arrojadas na Idade Moderna, o Iluminismo do séc. XVIII e, no séc. XX, os movimentos republicanos e de esquerda.Por outro lado, o ‘‘autenticamente nacional’’ liga-se à tradição -o espírito forjado pela Cruzada Ibérica contra os muçulmanos. Desta luta secular nasceu o Estado espanhol, que unificou os Reinos Cristãos, sustentado pela Igreja Católica. Durante a Idade Moderna, a Inquisição preservou a unidade, combatendo os “estrangeirismos” -qualquer posição contrária ao binômio Monarquia/Igreja. Nesse sentido, Franco foi o último cruzado ibérico, e com um curioso detalhe geográfico: enquanto os cruzados dirigiam-se do norte para o sul, Franco veio do Marrocos para a Espanha. Da base militar africana que ecoava a longínqüa Reconquista, partiria o comandante da Cruzada contemporânea, contra as novas heresias: o Comunismo e a República.
Banidos os infiéis dos novos tempos, Franco indicou Juan Carlos de Bourbon à sucessão. Em 1975, o ditador desaparecia, depois de uma demorada agonia. Em 1976, coroado rei, Juan Carlos iniciou a redemocratização. Convocou as lideranças políticas para uma acordo que, entre outras coisas, legalizaria os partidos e convocaria eleições. O Pacto de la Moncloa, assinado em 1977, assegurava a manutenção da monarquia.
Desde 1982, o governo foi ocupado pelo Partido Socialista de Felipe González, que, reeleito sucessivamente quatro vezes, jamais discutiu o sistema de governo. No quadro da monarquia, foram negociadas e cedidas autonomias às províncias, quebrando o ímpeto separatista. No País Basco, o ETA, agrupamento separatista radical, isolou-se em meio a uma furiosa campanha de atentados.
A vitória do PP de José Maria Aznar não significa uma impossível volta do franquismo. Mas representa a permanência de uma tradição antiga, o lado sombrio da história espanhola. O invólucro da monarquia, que assegura a unidade do Estado contra o separatismo, abriga, agora, a alternância no poder das duas tendências que se chocaram há 60 anos. O que as une é um consenso negativo, o silêncio sobre o tema proibido da República. Na Espanha, a sublimação se tornou o fundamento da vida política.
Novo premiê é neto de embaixador de Franco
Nas eleições gerais de 3 de março, o Partido Popular (PP) de José Maria Aznar derrotou o Partido Socialista de Felipe González, premiê desde 1982. Na “era Gonzalez”, os herdeiros do franquismo substituíram o velho líder Manuel Fraga Iribarne pelo jovem Aznar (cujo avô foi embaixador de Franco), eleito chefe de governo.
A vitória do PP é resultado da combinação de vários fatores: a multiplicação dos episódios de corrupção no governo; o escândalo gerado pela descoberta de que um ex-ministro de González teria adotado o uso de métodos ilegais no combate aos separatistas bascos; o índice de desemprego superior a 20%, o maior da União Européia, e o fim da longa era de crescimento econômico que garantiu o prestígio dos socialistas.
A vitória do PP não foi uma surpresa. Em 1994, o partido já havia vencido as eleições ao Parlamento europeu; em 95, chegou ao poder nas principais cidades e governos regionais. Mas ela assinala uma dupla reviravolta. Como aconteceu na França, um ciclo de poder socialista cede lugar ao conservadorismo. Além disso -e mais importante-, a direita espanhola, herdeira da Guerra Civil de 1936-39, adquire plena cidadania política.
Elaine Senise Barbosa pós-graduanda em História Social na USP
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