Voltou à moda profetizar a morte do Estado nacional. Analistas políticos e econômicos, historiadores, sociólogos e geógrafos têm se dedicado, nos últimos anos, a construir cenários do futuro nos quais o Estado-Nação ocupa um lugar apenas marginal na política internacional. É um curioso paradoxo que isso ocorra precisamente quando o nacionalismo, sob as mais variadas formas, retoma impulso e energia que pareciam perdidos, reafirmando o seu papel crucial.
O pioneiro da nova onda foi Francis Fukuyama, cientista político americano que emergiu do anonimato, há alguns anos, proclamando o “fim da história”. No embalo da queda do Muro de Berlim e da desmoralização dos regimes comunistas da União Soviética e leste europeu, Fukuyama comemorava a suposta vitória final da ordem liberal do Ocidente e o conseqüente encerramento do conflito ideológico que, desde a Revolução Russa de 1917, parecia condicionar a hostilidade entre as potências. Sob essa perspectiva, o pós-Guerra Fria estaria isento de disputas geopolíticas e, em geral, da rivalidade dos Estados: sobraria lugar apenas para a concorrência econômica entre empresas.
O otimismo de Fukuyama sofreu logo a crítica do pessimista Samuel Huntington, da Universidade de Harvard, que enxergou no futuro o pesadelo do “confronto de civilizações”.
Para ele, o mundo do pós-Guerra Fria estaria prestes a se fragmentar em zonas culturais hos- tis umas às outras, cada uma delas fechada no casulo das suas certezas absolutas e avessa ao diálogo.
A Europa Ortodoxa assumiria o espaço abandonado pelo bloco soviético, agonizando a oposição histórica que a separa da Europa Ocidental liberal, de tradição protestante ou católica. O confucionismo desenharia um círculo de valores morais isolando a Ásia do Ocidente.
O islamismo fundamentalista traçaria outro círculo, em volta do mundo árabe, tornando-o ainda mais inacessível e atiçando os ressentimentos e os ódios. Onde Fukuyama vê branco, Huntington vê preto, mas nenhum dos dois enxerga um lugar destacado para o Estado: na tese do primeiro, ele se dissolve no liberalismo globalista triunfante; na do segundo, nos blocos de culturas supranacionais.
A mesma melodia é tocada em outro tom pelos que se preocupam com a globalização econômica. O argumento, nesse caso, consiste em focalizar a fragilidade do Estado nacional diante das novas realidades financeiras, monetárias, comerciais e tecnológicas que tendem a integrar os mercados e restringir o poder de comando dos governos. Os fluxos de mercadorias e capitais, os mercados financeiros globais, as estratégias mundiais das grandes corporações tudo isso, potencializado pela revolução da informática, estaria dissolvendo as fronteiras econômicas do Estado. A configuração de blocos econômicos supranacionais - e especialmente o projeto da União Econômica e Monetária Européia - parecem ilustrar decisivamente a tese de que o velho e bom Estado-Nação sofre de senilidade avançada.
A moda, todos sabemos, é cíclica. Assim como a mini-saia e a calça boca-de-sino retornaram, depois de um intervalo de vinte ou trinta anos, a nova profecia representa uma reciclagem de si própria. Na década de 50, auge da Guerra Fria, John Herz fez escola ao teorizar o “falecimento” do Estado-Nação. Seguindo as tendências da época, ele construiu o raciocínio em termos estratégicos e militares, acentuando a permeabilidade das fronteiras nacionais às poderosas tecnologias bélicas da era nuclear. O Estado, incapaz de proteger o seu território da ameaça representada pelos mísseis balísticos, não teria outra alternativa senão ceder a sua soberania a grandes alianças político-militares, de caráter internacional, como a Otan ou o Pacto de Varsóvia. Despido da soberania, o poder estatal perdia a sua alma e razão de ser.
Agora, como antes, os profetas estão errados. Quando Charles de Gaulle, há exatos trinta anos, retirou a França do comando militar unificado da Otan, estava oferecendo um desmentido prático da tese de Herz: o general afirmava a prioridade do Estado francês e o seu apego absoluto à soberania, que passava a se alicerçar no arsenal nuclear nacional. Quando Fukuyama celebra o fim do conflito ideológico, ele se esquece que nem mesmo durante a Guerra Fria a rivalidade entre os Estados Unidos e a União Soviética se estruturava em torno de idéias ou concepções de mundo: como evidenciou o confronto sino-soviético, o que estava em jogo, em todos os casos, era o equilíbrio de poder e a segurança dos Estados. Quando os Estados árabes, apesar de toda a retórica dos governos, estão mais longe do que nunca de formar a confederação tantas vezes projetada, e quando uma corrida armamentista ameaça elevar a tensão que separa os Estados asiáticos, as zonas culturais de Huntington perdem a maior parte do seu encanto original.
A globalização econômica - uma expressão que está na crista da onda - é uma realidade.
Mas, ao contrário do que sugerem as aparências, cada um dos progressos na direção da integração dos mercados é fruto de uma decisão política dos Estados. Foi assim com a desregulamentação dos mercados financeiros, na década passada, sob o influxo das políticas liberais de Ronald Reagan e Margareth Thatcher. Foi assim com a ampliação da União Européia e a queda das barreiras nas fronteiras dos países-membros. No segundo semestre, novamente, os Estados da UE estarão reunidos para rever as decisões do Tratado de Maastricht, em particular o cronograma crítico de implantação da projetada moeda única. Os Estados fazem a globalização - e podem desfazê-la.
Os Estados Unidos e a União Soviética foram as superpotências do século XX. Os Estados Unidos -ameaçados na sua hegemonia econômica- e a Rússia -ameaçada no seu poder geopolítico e integridade territorial- promovem eleições presidenciais nos próximos meses.
Não são acontecimentos corriqueiros. Desta vez, o que está em jogo é nada menos que o reposicionamento dos mais poderosos Estados do planeta no tabuleiro desarrumado do mundo pós- Guerra Fria.
Europa inventou o Estado nacional
As terras emersas do globo dividem-se em 184 Estados. O de maior área, a Rússia, ocupa mais de 17 milhões de km2 . Há cinco com áreas que compreendem de 7 a 10 milhões de km2: Canadá, China, Estados Unidos, Brasil e Austrália.
No outro extremo, 65 Estados têm áreas inferiores a 50 mil km2, menores que a Paraíba. Entre estes, estão os Estados insulares do Pacífico (como Samoa Ocidental, com menos de 3 mil km2) e do Caribe (como Santa Lúcia, com cerca de 600 km2). Mas todos eles compartilham a mesma alma, que os faz pertencer à família dos Estados: todos têm território e exercem a soberania.
O Estado territorial não existiu sempre é uma criação mais ou menos recente.
A sua origem encontra-se na Europa renascentista, quando as monarquias absolutas empreenderam a centralização do poder político, golpeando e destruindo os particularismos feudais. As terras do reino, até então submetidas aos poderes locais, dos nobres e das cidades autônomas, tornavam-se domínio dos monarcas.
As fronteiras, formadas por faixas imprecisas e pontilhadas de enclaves territoriais, transformaram-se em limites lineares. A sede do poder político, que flutuava de uma cidade a outra acompanhando os deslocamentos dos reis, fixou-se em capitais permanentes.
No Estado territorial renascentista, a soberania confundia-se ainda com a propriedade. O mundo medieval, que continuava funcionando como alicerce das novas monarquias, retardava a separação entre o poder e o pertencer. As terras do reino eram patrimônio do monarca.
A esfera pública e a privada permaneciam integradas na pessoa do soberano e Luís XIV podia proclamar a sua identidade com o Estado: L’État c’est moi.
O casamento era uma estratégia diplomática, abrindo caminho para a expansão de território, força e prestígio das dinastias.
O matrimônio substituía a guerra, quando não conduzia a ela.
As esferas pública e privada separaram- se apenas com o advento do Estado nacional. Na Inglaterra, esse foi um lento processo de subordinação do monarca à vontade dos cidadãos, expressa através do Parlamento. Na França, foi uma erupção revolucionária que decapitou o monarca, instalando a república (do latim res publica, ou coisa pública). O Estado- Nação faz o poder derivar do povo, que se torna assim a fonte e o titular da soberania. Na teoria política, a transição foi antecipada por John Locke (1632-1704), Montesquieu (1689-1755) e Jean-Jacques Rousseau (1712-78). Locke defendeu a limitação do poder real. Montesquieu construiu o sistema da separação dos poderes, distinguindo a administração (Executivo) da produção de leis (Legislativo) e do controle da sua aplicação (Judiciário). Rousseau ergueu a bandeira da democracia, investindo contra o absolutismo.
O cidadão tomava o lugar do súdito.
O Estado-Nação é uma invenção européia que migrou para todos os continentes. Ele se aclimatou melhor na América do Norte, onde a Revolução Americana de 1776 prefigurou a explosão francesa de 1789. Na América Latina, foi instalado pelas baionetas rebeldes de Bolívar e San Martin, mas se enraizou no chão lavrado pelas elites aristocráticas coloniais. No Brasil, confundiu-se com a Coroa e a escravidão, misturando a modernidade à tradição e perpetuando o princípio da desigualdade.
No mapa do mundo, o traçado imaginário das fronteiras assinala a existência real dos Estados. Nem sempre as nações desenharam as fronteiras dos seus Estados. Na África, por exemplo, o traçado dos limites foi imposto pelo colonizador europeu, nas últimas décadas do século passado. Os Estados africanos, atormentados por guerras tribais e pelo deslocamento de milhões de refugiados, vivem a sua história nos recipientes inventados pelos outros.
Mas a insatisfação com os recipientes fornecidos pelo passado está um pouco em todos os lugares. Na antiga União Soviética, cuja implosão recente originou quinze Estados de tamanho e poder muito desiguais, entre os quais uma Rússia que tateia o novo entorno para redescobrir o seu lugar no mundo. Nos Bálcãs, onde o incêndio étnico que consumiu a Iugoslávia ameaça reacender nas cinzas desarrumadas dos pequenos Estados, emanados de uma paz injusta. Na Irlanda dividida, cuja parte norte conhece há décadas o renitente conflito entre católicos e protestantes . Na Palestina, onde dois povos e duas religiões disputam a mesma terra, santa para todos eles. O mundo dos Estados é o leito das paixões e atrocidades humanas, mas não se conhece outro.
Boletim Mundo Ano 4 n°1
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