sábado, 1 de janeiro de 2011

Fim da Guerra Fria inaugura Direito de Ingerência

Os primeiros fuzileiros americanos (marines), portando óculos para missões noturnas, foram surpreendidos pelas luzes ofuscantes de flashes e holofotes. A mídia se antecipara às tropas, ocupando a praia da Somália escolhida para o desembarque. Na madrugada de 7 de dezembro, começava a Operação Restaurar a Esperança, a segunda intervenção militar autorizada pelo Conselho de Segurança da ONU após o fim da Guerra Fria.
A primeira, deflagrada contra o Iraque um ano antes, visava liberar o território kuaitiano invadido por Sadam Hussein. Na Somália, tratava-se de garantir  a chegada da ajuda internacional para as vítimas da fome provocada pela guerra entre clãs tribais num país sem Estado. À frente das tropas, encontrava-se  mais uma vez os Estados Unidos.
O contraste entre a superpotência e um dois países  mais miseráveis da África foi explicitado na frase de um comandante dos marines, questionado sobre a hipótese de luta com a guerrilha: Se alguém tentar algo, temos duas possibilidades: desarmá-lo ou vaporizá-lo. A Somália, situada na faixa pré-desértica  do Sahel, tem dez milhões de habitantes e renda per capita anual inferior a 200 dólares. A taxa de analfabetismo  supera 80% da população adulta, a esperança de vida é de 45 anos e mais de 130 crianças em cada mil morrem antes de completar um ano.
Comentarista da  imprensa e da mídia eletrônica dividiram-se entre o apoio entusiasmado à “operação humanitária” e a crítica cética, que enxerga na operação uma resposta da Casa Branca à opinião pública, chocada pelas imagens da fome. A Operação Restaurar a Esperança é mais do que isso.
Na trilha aberta pela Guerra do Golfo, ela constitui a afirmação de uma realidade nova no cenário internacional – o “direito à ingerência” da comunidade dos Estados, violando o tradicional princípio da soberania nacional. O novo “direito” tem como titular o Conselho de Segurança da ONU e como instrumento uma coalizão de forças militares capitaneada pelos Estados Unidos.
É uma grande mudança.
Nas quatro décadas de Guerra Fria, a ONU revelou-se impotente para adotar medidas práticas de intervenção nos conflitos regionais, limitando-se a proclamar resoluções retóricas. A sua estrutura de decisão refletia ao mesmo tempo os resultados da Segunda Guerra e o equilíbrio geopolítico do pós-guerra. O direito de veto conferido aos membros permanentes do Conselho de Segurança (Estados Unidos, União Soviética, Grã-Bretanha, França e China) assegurava  os interesses das superpotências. A divisão do mundo em blocos geopolíticos subordinava o “direito à ingerência” a esses interesses.
O princípio da soberania nacional e da não-intervenção nos assuntos dos Estados foi a  tradução diplomática da paralisia da ONU. Respeitando-o, o mundo assistiu inerte ao genocídio de milhões de cambojanos pela ditadura comunista, às perseguições políticas  dos regimes militares latino-americanos, a episódios de fome tão devastadores como na Somália.
A desagregação da União Soviética e o alinhamento da Rússia com a política externa de Washington  alteraram esse cenário. O novo “direito à ingerência” espelha os objetivos e prioridades da Casa Branca, aplicando-se seletivamente. Israel, que viola resoluções da ONU pela devolução dos territórios palestinos ocupados e deporta ativistas islâmicos contrariando as convenções internacionais, não está ameaçada pelo “direito à ingerência”.
A soberania nacional e não-intervenção vigoram também, ainda que parcialmente, na Bósnia-Herzegovina. Na antiga república iugoslava que proclamou a independência em março do ano de 1992 a guerra entre sérvios, croatas e muçulmanos  tingiu -se do horror das operações de “purificação étnica” nos territórios conquistados pelos sérvios. A ONU  expulsou de seus quadros a nova Iugoslávia (Sérvia e Montenegro), decretou um embargo naval contra  os sérvios e uma zona de exclusão aérea sobre a Bósnia, mas absteve-se de pedir uma intervenção.
Na Somália, o esperado sucesso militar “humanitário” serve para justificar, perante a opinião pública, o novo “direito à ingerência”. Na  Bósnia, a guerra popular sem front definido e o entrelaçamento geográfico das etnias ameaçam desmoralizar uma operação militar terrestre, desfazendo o consenso em torno do “direito à ingerência”.
Apesar da retórica “piedosa” de Washington, intervenção na Somália tem objetivo estratégico O fim da Guerra Fria proporcionou aos Estados Unidos a liberdade de movimentos para montar um dispositivo de segurança em torno das regiões petrolíferas da península arábica. Um sonho americano nascido nos anos setenta, época dos “choques de preços” do petróleo, tornou-se realidade nos anos noventa.
A Operação Tempestade no Deserto (1991-92), de desembarques no Kuait e destruição do poderio militar do Iraque, lancetou o Golfo Pérsico. A Operação Restaurar a Esperança (1992-93), de desembarque “humanitário” na Somália, lancetou o Golfo do Áden.

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