sábado, 1 de janeiro de 2011

Inflação e Indústria Sucateada Ameaçam Desestabilizar Economia Argentina

Com Plano Cavallo, Buenos Aires torna-se uma das cidades mais caras do mundo  Em janeiro de 1993, o importante jornal argentino Clarin anunciava que Bueno Aires era uma das cidades mais caras do mundo – mais do que Nova York e Paris. Um cafezinho e uma garrafa de água mineral custavam, à época, o equivalente a 5 dólares. Apesar disso, em aparente contradição, a inflação parecia ser baixa: 17% ao ano. O presidente Carlos Menem  comentou da seguinte forma o índice inflacionário:
A Argentina, hoje, está no grupo de países com menor alta de preços da América Latina e do mundo (…) Quando lembramos que em 1989 a inflação chegou a 4.923%, podemos perceber quanto conseguimos avançar (O Estado de S. Paulo, 07.01.93, pág. 09).
Como explicar um custo de vida tão alto com uma inflação tão baixa? E que “milagre” foi esse, que transformou a hiperinflação de 1989 nos 17% de 1992? A Argentina teria encontrado o “mapa da mina”?
O “milagre” foi decretado em 1o de abril de 1991, quando o então ministro da Economia, Domingo  Cavallo, lançou o plano econômico que seria batizado com o seu nome.  Essencialmente, o Plano Cavallo atrelava a moeda argentina (à época, o austral) ao dólar. O governo argentino se comprometia a pagar 10 mil austrais (valor depois rebatizado com um peso) por um dólar, e a manter fixa e imutável essa relação. A moeda argentina seria sustentada  pelo Estado, através de artifícios financeiros, para manter o seu valor frente ao dólar.
Como num passe de mágica, o Plano Cavallo impunha um fim súbito à depreciação do austral.
A moeda argentina tornava-se “forte”, estável. Pelo menos até o início de 1993, o governo mantinha seu compromisso. Um  peso continuava comprando o dólar. Em 4 de janeiro, novo decreto governamental permitia que os argentinos abrissem conta bancária em dólares, com direito a emitir cheques e a sacar a moeda americana. Na prática, o austral (ou peso) foi substituído pelo dólar. Completava-se a primeira fase da dolarização da economia.
Como num passe de mágica, o Plano Cavallo impôs um fim súbito à depreciação da moeda na Argentina .  Mas o Plano Cavallo não foi apenas uma estratégia financeira. Implicou, também, uma profunda reformulação da economia como um todo. Liberal, contrário à intervenção do Estado na economia, Cavallo renunciou a qualquer controle sobre preços e salários; operou um plano radical de privatização das empresas e serviços estatais (foram vendidas todas as estatais de telecomunicações e petroquímica, do setor ferroviário, as Aerolineas  Argentinas, canais de TV e usinas de energia elétrica); cortou gastos públicos, demitiu milhares de  funcionários; reduziu impostos e liberou a entrada de capital estrangeiro.
No começo, houve uma reação aparentemente positiva da economia, principalmente causada pela entrada de milhões de dólares. Os indicadores econômicos (veja o quadro) pareciam surgir um país em crescimento. Mas, lentamente, problemas estruturais começaram a se acumular e a ameaçar a Argentina com uma “explosão” de sérias conseqüências econômicas, políticas e sociais.
 A maior das ameaças é a decorrente do “sucateamento” do parque industrial do país.
A indústria argentina, já abalada por anos de crise, não poderia competir em igualdade de condição com as grandes multinacionais estimuladas por Cavallo a exportar seus produtos para o país. A Argentina passou a importar muito mais do que exportava, criando o que em “economês” se chama déficit da balança comercial.
Nos  primeiros  três meses de 1992, as importações foram equivalentes ao triplo do volume do mesmo período em 1991. Até julho de 1992, o déficit acumulado era de US$ 572 milhões. A partir daquele mês, o governo deixou  de divulgar cifras, mas calcula-se que o ano foi encerrado com déficit de US$ 2 bilhões.
A Argentina, que durante dez anos exportou mais do que importou, passou a mandar cada vez mais dólares para o exterior em troca de mercadorias. Mas, apenas para pagar, em 1993, os compromissos com seus credores externos, o país terá que gastar US$ 3,4 bilhões, equivalentes a 2% do Produto Interno Bruto. Para conseguir esse dinheiro, o governo terá que impor maior carga tributária sobre o contribuinte, inclusive porque o capital oriundo das privatizações foi gasto em 1992. É óbvio, neste ponto, que as perspectivas são de aperto ainda maior para a já asfixiada indústria nacional. A sombra da falência é cada vez mais concreta para um número crescente de empresários, com a conseqüente ameaça de desemprego, maior queda na arrecadação de impostos e paralisação de setores inteiros da economia.
Uma “saída” para estimular a indústria e tentar reativar o mercado interno seria desvalorizar o peso, para tornar mais caro o dólar e encarecer, assim, o produto importado que  concorre com o nacional. O volume das importações  cairia, e a economia se aproximaria de seu nível real. Mas isso seria equivalente a confessar o fracasso do Plano Cavallo. Seria admitir que o peso argentino continuou  sofrendo desvalorização em relação ao dólar desde abril de 1991, e que o seu valor real caiu para níveis bem inferiores aos 10 mil austrais congelados naquela data. Seria admitir, enfim, que a inflação continuou existindo, apesar da camuflada por decreto.
A maior das ameaças é provocada pelo “sucateamento” do parque Industrial, incapaz de competir com as “multis” O Plano Cavallo criou, na Argentina, uma das mais altas inflações do mundo em dólares. Se a cifra de 17% de inflação ao ano parece pequena, basta lembrar que nos países cuja moeda é realmente forte (Estados Unidos, Japão e os ricos da Europa) ela quase nunca supera os  7%. Quando o faz, sinaliza uma séria crise. O Plano Cavallo fez com que bilhões de pesos em circulação no mercado argentino transformassem o dólar em moeda artificialmente barata.
É isso que explica o fato de que Buenos Aires torno-use  uma das cidades mais caras do mundo. Mas isso não que dizer que os argentinos estejam mais ricos. Quer dizer, apenas, que a hiperinflação é um risco não eliminado. Os  problemas para o governo argentino é saber como sair do Plano Cavallo sem voltar ao patamar dos 5.000% “milagrosamente” interrompido em abril de 1991.
A dolarização da economia argentina e o conseqüente “sucateamento” de seu parque industrial lançam uma pesada sombra também sobre o projeto de formação de um mercado unificado do Brasil, Argentina, Paraguai e  Uruguai. O projeto, conhecido como Mercosul, foi criado pelo Tratado de Assunção, em março de 1991. O tratado fixa a data de 1o de janeiro de 1995 para a implantação da livre circulação de bens e serviços entre os signatários, através da eliminação de barreiras tarifárias e criação de uma Tarifa Externa Comum para o comércio com não-signatários.
Inspirado no processo de formação de outros mega-blocos  (Comunidade Européia e Nafta, formado pelos Estados Unidos, Canadá e México), o Mercosul tem o objetivo de fortalecer e
unir os mercados internos dos países-membros. Mas, como conseqüência do Plano Cavallo, a Argentina parece caminhar muito mais no sentido da “integração” ao Nafta.
O Nafta (North America Free Trade Agreement,  criado em agosto de 1992) anunciou uma “zona de livre comércio” entre os países da América do Norte. Mas, em função do tremendo desnível econômico entre México, Estados Unidos e Canadá, o “livre comércio” entre estes países apenas significou que o mercado mexicano passou a ser “inundado” por produtos de seus ricos “associados”. Oferece, em troca, matéria prima (em particular, petróleo) e mão-de-obra  baratas.
Apesar da distância geográfica entre Argentina e Estados Unidos, o Plano Cavallo criou as condições para um processo de “mexicanização” do país. Não é caso único na América do Sul. O Chile também caminha nesse sentido, razão pela qual não integra o Mercosul.
A ditadura militar chilena promoveu, nos anos 80, o plano mais radical de desindustrialização combinada com cortes de gastos sociais (o Estado chileno diminuiu em 1/3 os investimentos em saúde, educação e moradia).
O Plano Cavallo, como se vê, apenas explicitou os passos de um caminho já conhecido.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 13.12.92, pág. 10

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