terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

As várias faces da religiosidade nacional

Se eu quiser falar com Deus...”
Quem não assistiu, em fins de 1995, à ‘‘guerra santa’’ televisiva entre católicos e evangélicos?
A palavra que empregamos, não à toa, é “assistir”, no sentido de “ver”, “presenciar”. Este verbo transitivo indireto nos remete à idéia de “espetáculo”, sugerindo-nos uma posição passiva de espectador diante dos fatos, do ‘‘show’’.
O que é que católicos e evangélicos têm a ver com show televisivo? Aparentemente,nada. Mas, com as novas tecnologias, a palavra de Deus passa a chegar aos lares por canais diferentes: o Senhor dos evangélicos é captado pela Record do bispo Edir Macedo; o dos católicos tem passaporte pela  Globo de Roberto Marinho.
O ponto alto da ‘‘guerra’’ foi o chute na imagem da Padroeira do Brasil, alimentando papos, rodas e ânimos, do botequim ao Congresso Nacional.
O impacto da agressão à imagem da santa mostra como, por um lado, somos um povo inundado de religiosidade, e, por outro, como é falsa a idéia de que vivemos em uma democracia de credos. Todos os dias somos convidados a falar com Deus, de todas as maneiras possíveis. Optamos pelas formas que mais nos convêm, que mais reforçam a idéia do Deus que achamos ser o mais justo, o “nosso” Deus.
E excluímos o Deus dos outros. Na maior parte do tempo, fazemos isso de maneira inconsciente.
Simplesmente, seguimos a tradição, os hábitos da família, o gosto cultural.
No começo do dia, se o rádio de casa está ligado, é mais ou menos inevitável ouvir a “Ave-Maria”. Chegando ao colégio, se religioso, provavelmente mais uma oração. Se a escola fizer parte da rede pública, eventualmente ministrará aula de Religião, caso sejam aprovados projetos em trâmite no Legislativo. Pode ser que a aula seja de História e comece com trechos da Carta de Pero Vaz Caminha e escritos jesuíticos, para mostrar que a civilização veio em boa hora para os índios pagãos. Na aula de Literatura, você poderá rezar na cartilha de um Jorge de Lima ou Murilo Mendes, lendo poemas em tom de evocação da divindade.
Nos museus de arte, é certo que veja obras sacras. Igualmente inevitável é encontrar a religião no cinema nacional, seja sob a forma “popular” e diluída no cotidiano (Mazzaropi), seja como tema e objeto de reflexão (O pagador de promessas, de Anselmo Duarte, ou Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha). Também o teatro dialoga com a religião, para criticá-la (Nelson Rodrigues) ou incorporando seus aspectos mais mitológicos e messiânicos (Vereda da Salvação, de Jorge de Andrade). Outras peças são “profanas”, como Mistérios Gozozos, adaptação feita pelo diretor Zé Celso de O Santeiro do Mangue (Oswald de Andrade). Mas a temática religiosa nem sempre é cristã: Madame Blavatsky (Plínio Marcos) explora a Teosofia.
A música popular brasileira é rica em referências religiosas. O sincretismo é traduzido pelo samba e enredos de carnaval; Vinicius de Moraes invoca as entidades africanas (Meu Pai Oxalá); a música-oração aparece em autores como Herivelto Martins (Ave Maria no Morro); Cartola blafesma (Sim); o Deus de Tom Jobim aparece no canto dos pássaros, na beleza das matas; Chico Buarque recorre ao Cálice cristão; Roberto  Carlos entoa Jesus Cristo; Renato Teixeira canta a religião do sertanejo em Romaria, imortalizada por Elis Regina; Luiz Gonzaga apela a Deus contra a seca (Asa Branca); Gilberto Gil indaga sobre a existência de Deus em Procissão.
Após os anos 60, graças à adoção do misticismo oriental operada pela contracultura, a religiosidade passou a incorporar a meditação, o uso de incensos e caminhos ‘‘alternativos’’ na busca da “verdade”. Esse momento é refletido, por exemplo, nas músicas de Gilberto Gil Retiros Espirituais e Se eu quiser falar com Deus, nos livros de Paulo Coelho, nos Florais de Bach, nos anjos de Mônica Buonfiglio.
Os evangélicos televisivos são um fenômeno relativamente recente. Sua mensagem rompe com a tradição, com a inércia cultural, e por isso causa estranheza. Eles surgiram com o desenvolvimento dos meios eletrônicos de comunicação. Assimilaram os componentes da formação religiosa e os traduzem segundo a linguagem mais adequada à mídia. Nas páginas seguintes, vamos investigar um pouco mais, através da Literatura, os ingredientes formadores da religiosidade brasileira e verificar como a mídia os instrumentaliza em seu próprio beneficio.
Boletim Mundo Ano  4 n° 1

Nenhum comentário:

Postar um comentário