terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Os homens escrevem os nomes de Deus

onde estás, que não respondes?”
Paulo César de Carvalho
Formada por múltiplas influências culturais, todas colocadas sob tensão pelo dominante catolicismo lusitano, a literatura brasileira jamais  concluiu a busca de sua identidade, jamais construiu a face de seu próprio Deus. Nesse sentido, a questão colocada por Castro Alves é um emblema e um desafio
A embarcação se aproxima do litoral recortado de Eldorado. Dentro dela, barbudos portugueses se acotovelam, feios e sujos. As imagens se sucedem em ritmo frenético, captando a nova terra descoberta. Paulo Autran porta um estandarte, de terno e gravata; Clovis Bornay reverencia uma enorme cruz, fantasiado de destaque de escola de samba; a ala dos índios é distribuída pela praia;os lusitanos procuram um lugar ao sol. Em meio a uma dança ritualística, num quadro de exaltação que antecipa o carnaval, o Brasil é batizado na “festa” de celebração da Primeira Missa. O Eldorado do cineasta Glauber Rocha é o palco onde se inicia nossa história, contada pelo mestre do “Cinema Novo” neste seu filme Terra em Transe ( 1967 ).
É aí que as culturas se plasmam: a gênese da formação da cultura brasileira. É aí que o Deus branco, loiro e de olhos azuis se encontra com os deuses de cabelos lisos e negros como as asas da graúna (os orixás de cabelo pixaim chegariam mais tarde): a liturgia lida em latim se segue do som dos tambores tribais. A idéia de mistura já se faz presente neste “batuque divino” pagão-cristão que inaugura o Brasil, nesta missa-carnaval rezada-cantada nesta igreja-sambódromo a céu aberto. Mas a fusão não teve nada de pacífica. Latim não rima com tambor. O português olha boquiaberto para o índio; o índio mira espantado o ser fantasiado do que aprenderia chamar civilização. Estranhos lado a lado, olham-se de lado. E fazem a guerra, que terminará com a vitória do colonizador. Deus e o Diabo na Terra do Sol.
Mais adiante o colonizador trará para a “Terra brasilis” o negro escravo, com seus atabaques e orixás. Novo ingrediente no barril da mistura de deuses. Sincretismo. A religiosidade brasileira, feita de todos esses elementos, misturados sob grande pressão, é enigmática. É na Literatura, sobretudo, que encontramos os registros da formação de nossa religiosidade. Vamos, por essa razão, nos deter em sua análise.
Século XVI - Literatura de Formação: A gênese da literatura brasileira é determinada pela lógica do colonizador, que é a lógica da exclusão do outro, de tudo que lhe é estranho. Este é o germe do que se chamaria, no século XIX, “darwinismo social”, ou seja, a justificativa ideológica para a suposta superioridade do homem europeu, branco e católico, sobre os outros povos e fés.
Alfabetizar e catequisar os silvícolas descritos por Pero Vaz de Caminha em sua Carta do Achamento do Brasil a D. Manuel. As cartas dos jesuítas (que compõem, ao lado da de Caminha, o “Quinhentismo” tupiniquim), de conteúdo catequético, relatam as missões da Companhia de Jesus. Mas o convencimento dos novos “fiéis” nem sempre se valeu do Verbo: não dando resultado a palavra do jesuíta, entrava em cena a espada do português.
Século XVII - Barroco: O mestre da oratória barroca conceptista (estilo fundamentado no engenhoso jogo de idéias e conceitos) Padre Vieira escreve peças sobre a arte de convencer, sobre o papel do pregador, como se nota no célebre Sermão da Sexagésima. Embora empenhado na missão civilizatória empreendida anos antes por seus pares (Vieira também foi educado pela Companhia de Jesus), não poupa esforços por se lançar na defesa dos índios presos e explorados por colonos maranhenses no Sermão de Santo Antônio aos Peixes. Democrático em termos: ao lado dos índios contra os colonos, mas desejoso por impor sua fé aos nativos. Outro nome da época, o brasileiro Gregório de Matos, tem poemas que mostram o enraizamento da fé religiosa na cultura.
Em  A Jesus Cristo Nosso Senhor, o poeta busca a clemência divina diante de seus descuidos terrenos: Pequei, Senhor; mas não porque hei pecado,/ Da vossa alta clemência me despido(...) Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada,/ Cobrai-a; e não queiras, pastor divino,/Perder na vossa ovelha a vossa glória. Não havendo perdão, não há, também, Deus. A exaltação religiosa fica evidente quando, em Minas Gerais, encontramos os santos barrocos de Aleijadinho.
Arrependimento, sentimento de culpa, penitência, perdão, comunhão: elementos que passam a fazer parte da consciência do povo em formação.
Século XVIII - Arcadismo: O que temos de mais significativo quanto ao que ora discutimos está na poesia épica. Mais precisamente, em Basílio da Gama: o longo poema Uruguai(1769) toma por mote a guerra dos portugueses contra os índios dos Sete Povos das Missões. Ao lado dos índios, estavam os jesuítas espanhóis, em terras que a Espanha deveria entregar a Portugal em troca da Colônia do Sacramento. Basílio se coloca ao lado de Portugal, rendendo homenagens à empreitada civilizatória do Marquês de Pombal, vendo os jesuítas como vilões, à medida que estimulavam os índios a enfrentar os portugueses, que chegavam para reconquistar o território. O grande herói, nas linhas da perspectiva “nativista” da época, ou seja, de valorização do “homem natural”, é o silvícola. Interesses políticos e religiosos em cena.
Difícil é saber o que seria menos nocivo ao aborígene: o português ou o jesuíta espanhol. O poeta viveu o que era dilema de alguns no “setecentismo” brasileiro: a formação cultural européia diante da rústica realidade nacional. Em termos emprestados de Oswald de Andrade, o poeta enfrentou o dilema de viver entre a “floresta” e a “escola”. Já a lírica árcade nada tem a ver com isso: trabalha com os deuses da Antiguidade, com o paganismo da mitologia grega.
Século XIX, primeira metade - Romantismo: Instaura-se no mundo uma descrença generalizada, o spleen, ou “tédio”, que acomete principalmente os jovens, nascendo das decepções com as promessas da Revolução Francesa . Todos se voltam para o casulo do “eu”, em atitude de introversão. Abandona-se o paganismo da Antigüidade Clássica, retomando-se o Deus medieval.
Como afirma Gonçalves de Magalhães, em Suspiros Poéticos e Saudades (obra que introduz em 1836 o movimento no Brasil): na gótica catedral, admirando a grandeza de Deus e os prodígios do Cristianismo.
As leis da Igreja, contudo, são condenadas quando se opõem ao individualismo sentimental. É o caso do celibato sacerdotal, “espécie de amputação espiritual”, atacado por Bernardo Guimarães em O seminarista (influenciado por Eurico, o presbítero, do português Alexandre Herculano). Deus já está, queiram ou não, tão presente que Castro Alves chega a cobrar-lhe atitude diante das desumanidades praticadas contra os negros escravizados -Deus, Senhor dos Desgraçados, dizei-me...
Século XIX, segunda metade - Realismo /Naturalismo: Afinado com o “cientificismo” da época, nega o irracionalismo e a subjetividade dos românticos. Deus diminui consideravelmente de tamanho diante das verdades científicas. O português Antero de Quental dá o norte: Varrida num instante toda a minha educação católica e tradicional, caí num estado de dúvida e incerteza, tanto mais pungente quanto, espírito naturalmente religioso, tinha nascido para crer placidamente e obedecer sem esforço a uma regra reconhecida.
O ser humano e as necessidades da carne ganham destaque, questionando-se, agora mais objetivamente, o celibato, como em O mulato, de Aluísio Azevedo, e O missionário, de Inglês de Sousa (obras identificadas com O crime do padre Amaro, de Eça de Queirós). O homem, filho da complexa sociedade industrial, é o grande tema.
Século XIX, final - Simbolismo: Repudia o Realismo e suas manifestações racionais, científicas. Nega a sociedade tecnológica que, como diz o crítico Alfredo Bosi, prometera o paraíso mas não dera senão um purgatório de contrastes e frustrações.
Contra a automatização do indivíduo, faz renascer as tendências metafísicas e espirituais. Como no Romantismo, o que importa é a “realidade subjetiva”. Contudo, não se trata do “eu” sentimentalóide  deste  valoriza-se a profundidade da alma. Como vemos em Cruz e Sousa, não há referências a um Deus específico  de algum credo -busca-se a sublimação espiritual, a diluição da alma nas regiões etéreas, no espaço infinito. Em Cárcere das almas tal desejo se evidencia: Ah! Toda alma num cárcere anda presa,/soluçando nas trevas, entre as grades/ Do calabouço olhando imensidades,/Mares, estrelas, tardes, natureza. Se Deus não aparece textualmente, seus ecos se percebem no teor de espiritualidade da composição.
Século XX -Modernismo: Oswald de Andrade, dentro do seu projeto de “redescobrir o Brasil”, faz menção explícita, no Manifesto Antropófago (1928), à indesejada presença “civilizatória” jesuíta -Contra Anchieta cantando as onze mil virgens do céu, na terra de Iracema- e sugere uma mudança de humor nativa com a chegada lusitana -Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade. A crítica bem-humorada à religião, nas linhas do “primitivismo”de 22 (releitura do índio em nossa história), é contestada pelo grupo Festa (1926), que se apoiava no “espiritualismo das forças interiores”. Este defende o canto do corpo e do espírito, do homem e de Deus, em nome do otimismo  e do encanto diante da “graça”da vida -um canto de equilíbrio entre valores materiais e espirituais. O modernismo dos anos 30 (segunda fase), destaca a atmosfera de um espiritualismo católico em Murilo Mendes, Jorge de Lima e Cecília Meireles. A “cosmovisão”do primeiro, por exemplo, aparece em versos como: Eu amo a minha família sobrenatural,/ (...) E todos ajuntando novos membros ao corpo/ De que o Cristo Jesus é a cabeça/ Irradiarão as palavras do Eterno. Jorge extrai da Bíblia imagens e verborragia. É uma religiosidade que briga em nome de Deus por humanidade e justiça: Não dividamos o mundo./ Dividamos Cristo:/ Todos ressuscitarão iguais.Mas, curiosamente, fala também do sincretismo religioso afro (a religiosidade dos negros com as influências locais), destacando o folclore caboclo e negro: Ai Bahia de Todos os Santos,/ até nos pecados das comidas,/ você botou nome santo?
Os santos de todos os terreiros habitam também as páginas do baiano Jorge Amado, internacionalmente famoso pelas exóticas ‘‘especiarias’’ com que tempera seus textos. É criador de tipos humanos que representam a influência do negro na construção da religiosidade terreiro, candomblé, Mãe Menininha do Gantois.
Já Guimarães Rosa, talvez o maior dos romancistas contemporâneos, foi além da exploração de componentes folclóricos: sua religiosidade transcende os credos, de certo modo é ‘‘universal’’. Explorou um ‘‘misticismo’’ ligado à investigação das dúvidas existenciais, os segredos da vida, da morte, do amor.
Nos anos 60/70, sob o impacto do movimento hippie e da contracultura, a religiosidade buscou inspiração no misticismo oriental e outras manifestações não-cristãs. Encontramos desde o ateísmo de um Ulisses Tavares (O diabo, amigo,é que deus não existe), até o taoísmo de Bashô nos haikais de Paulo Leminski.
Hoje, diante de um vazio que chamamos de ‘‘crise das ideologias’’, apela-se para as soluções esotéricas de um Paulo Coelho, para as promessas de sorte portadas por gnomos e duendes, para a proteção dos querubins e arcanjos de uma Mônica Buonfiglio. Sinal dos Tempos.
Boletim Mundo Ano 4 n° 1

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