Newton Carlos
De tão mal praticado e tão demonizado o comunismo perdeu espaço no imaginário popular como produto que é, em sua origem, de ideais igualitários e de solidariedade humana. No rescaldo da Revolução Francesa, já depois da queda de Robespierre, passado o Terror, Graco Babeuf criou a Sociedade dos Iguais, revoltado com o fato de que “menos de um milhão desfruta do que pertence a mais de 20 milhões”. Babeuf acabou guilhotinado em 1797, levando para o túmulo o seu sonho de uma República dos Iguais, de uma “grande comunidade nacional de bens”, que fizesse o que a Revolução não havia feito, embora falasse em liberdade, igualdade e fraternidade.
Mas outros o retomariam. Surgiu a Liga dos Justos, na qual militava um filósofo alemão de nome Karl Marx, com idéias mais combativas. “Até hoje os filósofos só fizeram interpretar o mundo de formas diferentes, cabe agora transformá-lo”, dizia. Partir para a revolução. Passar do “socialismo utópico” ao “socialismo científico”, que na segunda metade do século XX se projetaria até os confins da África e da Ásia e pelas ilhas do Caribe. Correram mundo fotos de faixas em Angola e Moçambique saudando o “socialismo científico”. O que ficou sendo conhecido na prática como comunismo, ou “socialismo real”, chegou a cobrir um terço da humanidade.
Em 1847 a Liga dos Justos transformou-se em Liga dos Comunistas, para a qual Marx, agora em dobradinha com outro alemão, Friedrich Engels, redigiu o Manifesto Comunista, lançado em fevereiro de 1848, ano de grandes agitações na França e em várias outras partes do mundo. No Brasil, a Revolução Praieira saiu-se com um manifesto ao mundo. O Manifesto Comunista foi declaração de guerra à burguesia, vitoriosa na Revolução Francesa, mas encarada como traidora desde Babeuf. Mudanças radicais.
O lema da Liga dos Justos era o de que todos os homens são iguais. Marx e Engels não concordavam.
Não reconheciam como irmãos categorias inteiras de seres humanos. “Que as classes dominantes tremam ante à idéia de revolução comunista”, vociferavam.
Ou “proletários de todo o mundo, uni-vos”, ou ainda “os proletários não têm nada a perder, a não ser os seus grilhões”. Nunca se soube muito bem o grau de influência do marxismo, que começava a se codificar, sobre os acontecimentos de 1848. Teria sido pequeno. Mas a Primeira Internacional, criada por Marx e Engels em 1864, foi o braço de ação de idéias que deflagraram a Comuna de Paris, em 1871, quando lideranças proletárias e socialistas tomaram a cidade por dois meses e meio e massacraram burgueses, “traidores de sua própria tradição revolucionária”.
Em 1868, Marx havia publicado o primeiro volume de O Capital, expondo os mecanismos de funcionamento do capitalismo e mostrando como detoná-los. Com a “fúria de um profeta hebraico”, descreveu como era “um dia de trabalho” na Europa da revolução industrial.
Diz-se que O Capital é um dos livros mais traduzidos (rivaliza com a Bíblia) e menos lidos do mundo. Quanto ao Manifesto, em 1860 foi afinal traduzido para o russo. Marx via a Rússia como “baluarte da reação”, mera fornecedora de matérias-primas.
Mas em 1903, sob a liderança de Lenin, combinação de marxismo e idéias próprias, nasceu na Rússia o partido Bolchevista, que em 1905 faria o seu primeiro teste revolucionário. Doze anos depois estava no poder. Os bolchevistas que tomaram o Palácio de Inverno, em São Petesburgo depois Leningrado e, de novo, São Petesburgo - eram um pequeno partido revolucionário num pais economicamente atrasado, de 140 milhões de habitantes, 70% analfabetos e diminuta parcela de operários industriais.
Fome e miséria na esteira dilacerante da Primeira Guerra Mundial (1914-18). Instalou-se afinal em palácio a crença na luta de classes, a certeza de que era inevitável a vitória do socialismo, quase um ato de promulgação pela força de leis históricas e internacionalismo revolucionário. Era como se mecanismos irreversíveis tivessem entrado em funcionamento.
Em 1919 Lenin criou a Terceira Internacional, conhecida como Comintern, das suas iniciais em russo. A Segunda, obra de Engels depois da morte de Marx, acabou contentando-se em reformar o capitalismo e originou os atuais partidos socialistas.
A Terceira, por oposição aos descaminhos moderados da predecessora, trataria da criação de partidos comunistas pelo mundo afora, da “difusão” do movimento que destruira o império dos Czares e da formação de um exército internacional de revolucionários profissionais. Ironia da história, os 34 anos de existência do Comintern só produziram uma revolução vitoriosa - a da Mongólia.
Fracassos na China em 1929 e no Brasil em 1935. Naufrágio no sangue de brigas com outras correntes revolucionárias na Guerra Civil Espanhola (1936-39). Antes de morrer, em 1924, Lenin não conseguia situar-se com clareza diante das alternativas de sucessão: se Stalin, secretário-geral do PC da União Soviética, formada em 1922, depois de cruenta guerra civil na qual morreram 13 milhões, ou Trotsky, criador do Exército da revolução. Sentia em Trotsky um “certo fascínio por soluções administrativas”, eufemismo para tiro na nuca. Chegou, no entanto, a pedir a deposição de Stalin do cargo de secretário-geral, em meio a avisos de que burocracia e nacionalismo exacerbado poderiam fossilizar a revolução.
Ganhou Stalin, que se revelaria um entusiasta inigualável das chamadas “soluções administrativas” que Lenin supunha estarem muito mais na cabeça de Trotsky. Vinte milhões foram massacrados entre 1934 e 1938, nos grandes expurgos, na fome provocada pela coletivização forçada, nas perseguições e repressão. Mais de um milhão pertenciam à velha guarda bolchevista. Impunha-se a barbárie.
Com a Segunda Guerra Mundial (1939-45), na qual morreram 27 milhões de soviéticos, segundo estatísticas atualizadas, as Forças Armadas da União Soviética fizeram o que o Comintern não conseguira fazer: a proliferação de regimes comunistas, que depois se alargaria com a vitória do PC chinês em 1949, a unificação do Vietnã sob o comunismo em 1975 e projeções no Terceiro Mundo do modelo soviético.
Mas na Europa houve o caso diferente da antiga Iugoslávia. Ela se livrou dos nazistas por conta própria, com os comunistas dominando a resistência e, em 1948, rebelou-se contra a hegemonia de Moscou, com assistência ocidental, claro. Uma primeira dissidência no recém-formado império soviético. Impulsos semelhantes começaram a aparecer, na mesma época, na antiga Tchecoslováquia, que vinte anos depois seria castigada com intervenção de tropas do Pacto de Varsóvia, por querer construir um “socialismo com face humana”. O homem, diziam os tchecos, “continua alienado mesmo nos países socialistas”. Pensando erradamente que não haveria intervenção armada, comemoravam a “ruptura com o stalinismo” como resgate das “premissas humanas do socialismo”.
Diante do que aconteceu à antiga Tchecoslováquia, um dos grandes pensadores da dissidência iugoslava, Milovan Djilas, escreveu que “a idéia comunista está morta”. Na Europa ocidental, em 1977, reunião de cúpula dos PCs da Itália, França e Espanha deu vida ao eurocomunismo, em confronto com o Estado soviético, acusando-o de “deformado e degenerado”.
Puro anti sovietismo, segundo Moscou. O PC francês depois recuou e o espanhol praticamente naufragou em disputas internas, mas o italiano, o maior do Ocidente, dez anos depois alinhou-se à social-democracia, acabou tirando o comunismo do nome e hoje faz parte da coligação de governo.
Stalin morreu em 1953 e foi substituído por Nikita Kruschev, que três anos depois, em reunião secreta do PC, expôs parte dos seus crimes, de abuso do poder e de “deixar que comunistas leais fossem acusados e condenados”. Um dos melhores biógrafos de Kruschev, Roy Medvedev, escreveu que ele teve o mérito de arquivar a doutrina de que mesmo guerras atômicas podiam ser travadas, com vitória garantida para o comunismo. Embora tenha cometido a “idiotice” de instalar mísseis em Cuba, quase prefácio de uma terceira guerra e talvez uma das razões de sua queda em 1964, Kruschev aparentemente fincou em Moscou a consciência de “devastação mútua” em caso de guerra atômica, fator de alteração profunda das relações internacionais.
Seu sucessor, Leonid Brejnev, foi colocado no cargo como um homem medíocre, com a tarefa de evitar mais turbulências e de agradar a todos, desde que conservada a estabilidade do regime. A intervenção na antiga Tchecoslováquia deu vida à Doutrina Brejnev: pau em quem ousasse levantar a cabeça.
Passaram-se quase vinte anos, até que Mikhail Gorbatchev emergisse em 1985 com a “perestroika” e a “glasnost”, reformas e transparência. Seis anos e meio depois estavam mortos o comunismo soviético e a própria União Soviética. Sovietólogos em geral responsabilizam um “catálogo de desordens”: desequilíbrio entre produção civil e militar, corrupção, burocratismo, nacionalismos etc. Mas um colapso ninguém esperava e ainda levará tempo para entendê-lo de modo cabal.
Boletim Mundo Ano 4 n° 6
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