“José Arbex Jr.
Moscou simbolizou os ideais de muitas gerações, serviu de ícone para o totalitarismo stalinista e foi palco da aventura da perestroika
Ao escrever Em Busca do Tempo Perdido, Marcel Proust descobriu que o encadeamento do som dos nomes das cidades importantes em sua vida (locais onde ele havia passado férias escolares, onde moravam amigos íntimos ou onde ele manteve experiências amorosas intensas) articulava uma “melodia existencial”. A mera pronúncia desses nomes propiciava a experiência de sensações a um só tempo intensas e fugidias - algumas angustiantes, outras agradáveis, não raro ambivalentes. O som do nome Paris, por exemplo, remetia ao frenesi da grande cidade, aos jogos de sedução, à cultura cosmopolita, aos prazeres e às decepções mundanas.
Evocando, talvez, o mesmo tipo de experiência, Umberto Eco escreveu O Nome da Rosa: o monge Adso, já no fim da vida, lamentava ignorar o nome da única mulher com quem mantivera relações sexuais, quando ainda era um jovem aprendiz. Sem o nome, não se completava a sensação: o corpo físico estava ali, na memória, mas faltava algo da ordem do simbólico, aquilo que escapava ao meramente biológico para se tornar plenamente humano.
Não pode causar surpresa, portanto, que o nome Moscou fosse tão significativo para várias gerações de jovens que lutaram pelo ideal de uma sociedade mais justa. Moscou, sede dos sovietes (assembléias de soldados, operários e camponeses), foi a capital do primeiro Estado socialista, fundado em 1917 por Lênin e Trotski. Mas também serviu de palco às monumentais tramas políticas que desembocaram, no final dos anos 20, na feroz ditadura totalitária de Josef Stalin.
Berço e túmulo da revolução, Moscou abrigou, entre os anos 1910-20, alguns dos principais movimentos estéticos de vanguarda do que mais tarde seria conhecido como “modernismo”.
Ali floresceram a poesia de Vladimir Maiakovski, o experimentalismo no teatro de Meyerhold, as artes plásticas de Kandinski e Malevitch, o cinema de Eisenstein e Vartov ... a lista, imensa, inclui propostas estéticas até então inéditas, como as experiências dos grupos proletários de cultura.
Essa riqueza seria esmagada por Stalin, que se manteve no poder até a morte, em 1953.
Por todas essas razões, um de meus objetivos ao iniciar a carreira de jornalista era ser correspondente em Moscou. Queria percorrer, fisicamente, o espaço da Praça Vermelha onde tantas vezes havia estado em imaginação.
Visitar lugares que eu conhecia intimamente sem jamais tê-los visto, como o Palácio dos Sindicatos, onde foi encenada, entre 1936 e 1938, a grande farsa jurídica que passou à história como os Processos de Moscou, mediante os quais Stalin livrou-se de todos aqueles que pudessem disputar-lhe o poder absoluto. Ou o Kremlin (fortaleza, em russo), sede do poder soviético, palácio sobre o qual tremulava a bandeira vermelha do comunismo - símbolo de um sonho transformado em mero ícone de propaganda de um regime corrupto.
Meu desejo, enfim, era o de participar da vida moscovita, na dupla qualidade de estrangeiro e cúmplice virtual de sua história. Consegui: cheguei a Moscou em junho de 1988, enviado pela Folha de S. Paulo. Deixaria a capital dos sovietes apenas em setembro de 1990, após ter vivenciado os momentos mais cruciais da perestroika.
Para lá voltei, depois, uma única vez: em novembro de 1992, quando entrevistei Mikhail Gorbatchev.
Na prática, a vida em Moscou foi tão difícil quanto rica em fatos. Seriam necessárias muitas páginas como esta para narrar os tropeços e situações absurdas causados por uma burocracia estatal imensa, pesada, truculenta e que se metia em todas as atividades do cotidiano.
Basta dizer que para comprar um mero bilhete de trem (por exemplo, para visitar Leningrado, hoje São Petersburgo) era necessário enviar requerimentos, com vários dias de antecedência, ao departamento do Estado responsável por conceder autorizações (eventualmente negadas, por alguma razão para sempre misteriosa).
Isso para não falar das filas imensas para comprar pão, leite, produtos básicos de higiene e miudezas. Filas que, no inverno, eram com freqüência expostas a temperaturas que, facilmente, chegavam aos 10 ou 15 graus negativos.
Moscou, de fato, lembrava muito o Brasil. Nada funcionava direito, exceto os mecanismos de corrupção, o metrô (construído nos anos 30, com um estilo arquitetônico suntuoso e brega, que refletia muito bem a concepção de arte monumental stalinista) e, claro, a troca de guardas diante do Mausoléu de Lênin (a múmia era muito bem preservada).
Mas este cenário, real e terrivelmente chato, era só parte da vida em Moscou. Naqueles anos tumultuados de perestroika, passeatas começavam a tomar as ruas da cidade, algo inconcebível desde os anos 20. Eu estava na manifestação em que alguém gritou de novo, pela primeira vez, a palavra de ordem que caracterizou a Revolução de 1917 e que depois seria sufocada pelo regime: “Vció vlast sovietam!” (todo poder aos sovietes !). A partir de 1988, artistas plásticos, grupos de rock, escritores, dramaturgos e atores puderam mostrar sua arte sem temer a censura e a polícia política. A vida foi transformada com rapidez vertiginosa.
A atmosfera política e cultural era atravessada por correntes de alta voltagem: havia ansiedade, excitação, medo, alegria, tensão, incertezas potencializadas ao máximo. Ninguém sabia como seria o dia seguinte. Os freqüentes rumores de golpes de Estado e volta da “linha dura” eram rapidamente desmentidos, apenas para dar lugar a novos e incessantes boatos. Nesse sentido, a tentativa de golpe de agosto de 1991 foi mil vezes anunciada: acabou acontecendo como mera farsa.
Tenho saudades de Moscou. Ou melhor, das “Moscous”. Da capital mitológica que conheci antes de conhecer a cidade “real”, mas também da cidade “real” que, para se livrar de seu passado totalitário, teve que exorcizar os fantasmas criados por sua própria mitologia. É uma saudade que jamais poderá ser mitigada, porque ela não se refere a um local físico, concreto, mas a um espaço imaginário e afetivo apenas enunciado pelo nome. Moscou é um nome que deve ser pronunciado com reverência e respeito, como acontece, por exemplo, com Hamlet, o príncipe que, apenas por acaso, era dinamarquês - circunstância secundária face ao fato de ele, em primeiro lugar, ter sido total e profundamente humano.
Moscou, da mesma forma, não pertence à Rússia: ela é um pedaço fundamental de toda a humanidade. É herança e é destino.
Boletim Mundo Ano 4 n° 6
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