Anne Marie Sumner
Se, na tradição do pensamento ocidental, podemos dizer que nossa linhagem é grega, também nossa grande referência urbana é a polis grega. Abstraído o substrato escravista, ela foi um espaço onde civilização e cultura se potencializaram na medida em que uma concretiza e realiza a invenção e hipótese da outra, como possibilidade da existência plena do cidadão: arte, ciência, política, filosofia.
Se houve uma mudança de estatuto do mundo, às vezes nomeada transição do paradigma mecânico para um paradigma eletrônico, ou mesmo globalização, parece que a fisicalidade desta condição que é a metrópole, chegou a uma antítese: a da sua própria congestão.
A cidade hoje age contra si própria. Referimo-nos a metrópoles como Los Angeles, Cidade do México, São Paulo, Rio de Janeiro, Pequim, Tóquio, Nova Iorque. Hoje, o elo entre civilização e cultura fragiliza-se. São Paulo é evidência disto. Se temos, entre a Praça da Sé e o Tatuapé,uma ocupação rarefeita e esgarçada, estruturada apenas por três grandes vias de circulação (Radial Leste, Trem e Metrô) e se supomos que ambos - Sé e Tatuapé - são centros,num fluxo em princípio contínuo (como são a Faria Lima, Paulista ou Moema), então a desocupação entre estes dois centros não tem sentido. De fato, ocorre por um mecanismo qualquer de especulação do solo, que acaba significando uma ação contra a urbe. Analogamente, o congestionamento cotidiano no trânsito é contra o cidadão e contra a própria cidade. A razão instrumental, em princípio civilizatória, passa a ter em si própria o seu sentido, e agindo independente da cultura, fica sem sentido.
As saídas são aparentemente várias: desde uma volta nostálgica à cidade-jardim bucólica que são os subúrbios que tanto proliferaram nas cidades americanas, até propostas técnicas de pulverização urbana, isto é, os “n” centros autônomos dentro do perímetro metropolitano. Ambas de certo modo “resolvem” o problema da congestão: a proposta suburbana se retira da metrópole e a outra se restringe a um segmento desta. Mas ambas as soluções acabam sendo redutoras porque, restritas espacialmente, perdem a maior qualidade metropolitana, que é o embate das produções em grande escala.
A metrópole é extraordinária porque permite o cruzamento, intersecção, sobreposição e justaposição de distintos incessantemente: de comércio, serviços, habitação, instituições, política, filosofia, economia, arte, ciência; dos infinitos percursos através da engenharia de tráfego. Antítese disto, a pulverização cria uma sucessão de aldeias; a sub urbanização, uma volta ao campo. A metrópole é o território por excelência da produção cultural lato sensu - trata-se de repotencializá-la.
A informação, potente ferramenta e substrato da situação contemporânea, contém, entretanto, uma espécie de correlato contrário que é a da constante remissão sígnica: um mundo imagético da referência em cadeia, tudo refere a um outro, nada é realmente. Um entorno de vídeo-clip, que suprime a tensão e o diálogo, instaurando a pura informação.
A pura informação: a fragmentação do significado, que bloqueia a construção da totalidade e do sentido, resultando num estado anestésico. O interlocutor foi eliminado. Paradoxalmente, como o retorno romântico à comunidade não é uma possibilidade, só resta trabalhar sobre a matéria-prima existente. É nela, nesta virtualidade etérea, que teremos que encontrar o campo do real.
Não há produção ou obra que se estruture virtualmente Ela só se ergue no e através do cruzamento entre as diferentes instâncias da sociedade: o padeiro, o carteiro, o estudante, o executivo, o engenheiro, o artista, o transeunte, de ônibus, de metrô, de carro e a pé. A produção do pensamento supõe o embate de idéias e situações na fisicalidade urbana. Sem urbe não há cultura, só a quietude: o gramado que emoldura a casa do subúrbio.
Subúrbio moderno oferece celas solitárias automatizadas
Lewis Mumford (*)
“Dentro da prática atual, vendemos o nosso direito urbano de berço em troca de uma triste confusão de automóveis. [...] Deixando que se deteriore o transporte de massa e construindo vias expressas fora e garagens de estacionamento dentro das cidades, a fim de estimular a máxima utilização do automóvel particular, nossos engenheiros rodoviários e nossos urbanistas têm ajudado a destruir o tecido vivo da cidade e a limitar as possibilidades de criação de um organismo urbano maior, de dimensões regionais. [...] Desencorajando e eliminando o pedestre, deixando de ampliar e aperfeiçoar o transporte de massa, nossos funcionários municipais e engenheiros rodoviários criaram uma situação que exige densidades residenciais extremamente reduzidas.
[...] Como veio a ocorrer sob o impacto da atual religião e mito da máquina, o Subúrbio de massa acabou com a maior parte das liberdades e deleites que os primeiros discípulos de Rousseau procuravam encontrar no êxodo da cidade. [...] Com efeito, quanto maior a dispersão demográfica, maior o isolamento da moradia individual e maior o esforço para refazer em particular, mesmo com a ajuda de muitas máquinas e artifícios automáticos, aquilo que costumava ser feito em comum, muitas vezes em meio a conversas, cânticos e o gozo da presença física de outros. [...] Cada membro do Subúrbio torna-se prisioneiro graças à própria separação pela qual pagou: é alimentado por uma estreita abertura, um cabo telefônico, uma onda de rádio, um circuito de televisão.”
(*) Trechos extraídos de A cidade na história, Martins Fontes/Unb, SP, 1982, p. 550-553.
Boletim Mundo Ano 4 n° 3
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