quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Diário de Viagem- Na Índia, todos os séculos agora

Álvaro Antônio Caretta
Em uma  tarde quente, desembarquei no pequeno aeroporto de Benares. Ao anoitecer, decidi fazer um passeio até o rio Ganges. Mal sabia eu o que as ruas de Benares reservavam-me.
O caos ! Foi essa a primeira impressão que tive. Uma multidão de pessoas indo e vindo, os pequenos triciclos motorizados ziguezagueando e inúmeras vacas impassíveis a tudo.
Como um náufrago exausto que se entrega às ondas, deixei-me envolver pelas ruelas mal iluminadas. Imagens que meus olhos estranhavam, vozes que meus ouvidos não compreendiam e aromas indescritíveis. Mal conseguia respirar. As pessoas vivem nas ruas; umas por necessidade, outras por opção.
Não há uma divisão efetiva entre o espaço público e o privado. Tudo se faz nas ruas, desde dormir até as necessidades fisiológicas. Em meio à confusão, as pessoas e as sagradas vacas convivem harmoniosamente.
A calmaria só se estabeleceu quando cheguei ao Ganges. A lua cheia brilhava solenemente e o cântico dos sacerdotes encheu-me de paz. Sentei-me à beira do rio, juntei as palmas da mão e pedi aos deuses que abrissem a minha alma para esse novo mundo.
Assim foi o meu primeiro contato com a Índia: intenso.
Benares é a cidade sagrada do deus Shiva. Na margem do Rio Ganges, os rituais de purificação são um espetáculo: milhares de pessoas banham-se, fazem exercícios de ioga, entoam cânticos e lavam suas roupas coloridas. Inúmeras fogueiras anunciam a cremação de cadáveres, cujas cinzas serão lançadas ao rio. O maior desejo dos hindus é morrer à beira do Ganges e obter a purificação espiritual para uma melhor reencarnação. Um provérbio resume a sua filosofia: “A vida é uma ponte, cruze-a, mas não construa uma casa sobre ela”.
Ainda atordoado pelo choque cultural de Benares, continuei minha viagem pelo vale do Rio Ganges em direção a Agra, onde se encontra o famoso Taj Mahal. O apogeu dessa antiga capital da Índia ocorreu durante o Império Mongol, entre os séculos XVI e XVII. Isso pode ser testemunhado pela riqueza e suntuosidade das obras arquitetônicas deixadas por esse povo.
O Forte de Agra guarda em suas pedras vermelhas a história desse período.
Essa indomável fortaleza foi construída por três gerações de imperadores.
Das torres do forte, olhando-se para o Rio Yamuna, pode-se contemplar à distância o Taj Mahal como uma pérola repousada em sua margem. Totalmente construído em mármore branco incrustado com pedras preciosas e de uma simetria impecável, é difícil acreditar que o imponente Taj Mahal seja um mausoléu. Quase todos os grandes monumentos do mundo são produto da fé religiosa ou da vaidade de um povo, mas o Taj Mahal constitui exceção - é um monumento ao amor. Quando sua esposa preferida, Mumtaz Mahal, morreu ao dar à luz o seu décimo quarto filho, o imperador Shah Jahan mandou construir um monumento que superasse em beleza tudo o que o mundo pudera contemplar.
Após vinte anos, essa jóia talhada em mármore estava pronta para guardar a tumba de sua amada.
O destino reservaria ainda algumas desilusões para o imperador. O seu desejo era construir um mausoléu em mármore negro na outra margem do Rio Yamuna, para guardar a sua própria tumba. Mas seu ambicioso filho, Aurangzeb, sedento pelo poder, mandou matar seus próprios irmãos e aprisionou Shah Jahan no Forte Vermelho, de onde este passou os últimos anos de sua vida apenas contemplando à distância o majestoso Taj Mahal.
De Agra, segui de ônibus para Jaipur, a capital do estado do Rajasthan.
As poucas estradas da Índia são precaríssimas. Todas elas possuem apenas duas pistas por onde circulam poucos carros de passeio, mas inúmeros caminhões, ônibus, carroças puxadas por camelo e, inevitavelmente, vacas.
As arriscadas ultrapassagens são constantes e perigosas. Todos os veículos levam em seus pára-choques a inscrição horn please (“buzine, por favor”).
A lei que impera nessa estradas é “venha que eu também vou”, mas buzine.
Jaipur, a cidade rosada, encanta os olhos. A beleza da arquitetura mongol está presente nas sacadas das pequenas casas cor-de-rosa, nas grandes fortalezas e nos palácios. Antigamente, a região do Rajasthan era conhecida como Rajputana, a morada dos deuses, onde viviam os príncipes Rajputes. A longa luta pelo domínio do norte da Índia entre os rajputes hindus – excelentes cavaleiros que se intitulavam descendentes diretos das divindades hindus e dos heróis dos poemas épicos Mahabarata  e os  poderosos muçulmanos foi muito violenta.
Esse conflito só foi amenizado quando o sábio imperador Akbar casou-se com uma princesa rajpute. Então, Jaipur viveu o seu apogeu durante alguns séculos, até que o imperador urangzeb, aquele mesmo que prendeu o pai no Forte de Agra, subiu ao trono. A sua crença fanática no Islã levou-o a destruir muitos templos hindus e construir mesquitas sobre eles.
Isso provocou inúmeras rebeliões e a decadência do Império Mongol. Hoje, Jaipur continua sendo a cidade legendária dos rajputes. É comum ver nas ruas homens com seus turbantes coloridos e longos bigodes. A cultura dessa cidade está vinculada ao espírito guerreiro e romântico das cortes.
A última etapa de minha viagem foi a capital da Índia, Nova Delhi. Logo à entrada da cidade, o trânsito e a multidão assustam: afinal, ali vivem mais de seis milhões de pessoas.
Na verdade, existem oito Delhis, pois cada imperador construiu a sua própria. A mais nova, concebida pelos ingleses no início deste século, é uma cidade planejada com largas avenidas e belos jardins. Em 1947, quando a Índia conquistou a sua independência, os ingleses abandonaram a cidade. Passear por Delhi e visitar o local onde foi cremado Mahatma Gandhi emocionou-me muito. O espírito desse homem iluminado ainda paira sobre o país. Uma vez, perguntado se a Índia independente seria capaz de governar-se, Gandhi respondeu que, caso os ingleses não tivessem estado lá, a Índia viveria no meio do fogo da mesma forma, mas esse fogo a purificaria.
Ao deixar Delhi, enquanto o avião fazia um sobrevôo pela cidade, eu me perguntava como um país pôde passar por um milênio de sucessivas invasões e dominação e, mesmo assim, conservar a sua cultura. A devoradora globalização do mundo poderia ser seu o próximo invasor ? Antes mesmo de Delhi desaparecer sob as nuvens, senti que eu não era mais o mesmo. Talvez esse seja o grande encanto da Índia assimilar o estranho, mas exigir que ele também a aceite.
Boletim Mundo Ano 4 n° 5

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