Assassinado há 30 anos na selva boliviana, vítima de emboscada arquitetada pela CIA, o líder guerrilheiro vira mito e alimenta a indústria de consumo
Ernesto Guevara de la Sarna era um jovem como outro qualquer da cidade de Rosario, Argentina, onde nasceu, em 14 de maio de 1928 (embora no seu registro de nascimento conste o dia 14 de junho, pequena “manobra” para ocultar o fato de que a mãe, Celia, parte de uma família burguesa decadente, havia se casado já grávida). Era introspectivo, sempre mal vestido e inquieto, jogava xadrez, lia poesia e romances (Baudelaire, Mallarmé, Faulkner, Zola e, já adulto, Freud, Kafka, Huxley, Neruda), sofria de asma e adorava viajar. Há 30 anos, em 8 de outubro, o já mundialmente famoso guerrilheiro “Che” morria na selva, vítima de uma emboscada arquitetada pela CIA e executada pelo Exército boliviano. Morria o homem, nascia o mito. E este, com freqüência, é muito mais poderoso - e, eventualmente, subversivo do que aquele.
As evidências da força do mito podem ser encontradas em todas as partes, inclusive no mercado editorial. Apenas em julho, foram lançadas três biografias de “Che”, todas imediatamente conduzidas às listas dos livros mais vendidos nas principais livrarias de São Paulo.
Jovens ostentam sua foto em camisetas, manifestantes (sindicalistas, estudantes, sem-terra) portam bandeiras com seu nome, revistas dedicam-lhe a capa. “Estou com essa camisa [estampada com a figura de “Che”] porque, depois de Jesus Cristo, ele é o cara que me dá mais esperança de uma vida melhor neste mundo”, declara à Folha de S. Paulo o pintor de paredes desempregado e petista Aprígio da Silva, que andou 20 quilômetros, desde Guaianazes, na zona leste da capital, para participar de uma manifestação no centro da cidade, em 26 de julho.
Talvez seja inconsciente, mas não casual a comparação entre o guerrilheiro e o Cordeiro de Deus. Ambos, cada um a seu modo, são redentores. Sofreram por nós, meros mortais. Iluminaram nossos caminhos obscurecidos pela miséria, pela injustiça. Deram de si sem nada pedir em troca. Suas vidas foram uma lição, uma referência ética, uma fábula que guarda profundos ensinamentos. Transcederam o humano.
Colocaram-se acima de nossas fraquezas, contradições, fragilidades. São heróis, são mártires. São mitos.
Mitos não são construídos por decreto. Ao contrário, encarnam o que existe de mais profundo e significativo para os homens que vivem em determinada época. Mas fazem isso “corrigindo” a realidade, suprimindo imperfeições, deixando de lado o contraditório, o pequeno. O mito “Che” não é igual ao guerrilheiro, líder revolucionário e companheiro de Fidel Castro no processo de derrubada da ditadura de Fulgencio Batista, em Cuba, em 1959. “Che” provou-se implacável com os adversários. Logo após a tomada do poder, notabilizou-se pela frieza com que ordenava execuções dos “inimigos da revolução”.
Essa dimensão é apagada no mito, segundo o qual “Che” foi “duro”, mas “sem perder a ternura, jamais”.
Resta saber o que havia em “Che” para que ele se transformasse em lenda. Sua vida, embora curta, foi épica.
Jovem, ainda universitário, percorre com uma bicicleta motorizada largas extensões das regiões mais pobres da Argentina, Chile, Peru, Bolívia, Colômbia e Venezuela. Conclui o curso universitário e visita a América Central, onde conhece de perto as conseqüências da aliança entre as oligarquias locais e o imperialismo americano: ferozes ditaduras, exploração desenfreada de camponeses e indígenas, matança de “suspeitos”. Em 1954, um golpe militar orquestrado pela CIA depõe o então presidente guatemalteco Jacobo Arbenz, democraticamente eleito.
“Che”, que já está envolvido em atividades políticas na Guatemala, é obrigado a fugir do país em 1955, dirigindo-se ao México. Ali conhece Fidel, treina como guerrilheiro e ajuda a organizar o grupo que derrubará Batista.
Já no poder, como ministro da Indústria de Cuba, “Che” entra em atrito com Castro. Acusa a União Soviética de tratar o país como “joguete” no quadro da Guerra Fria (em particular durante a tentativa de instalação de mísseis soviéticos na ilha, em 1962), e apresenta discordâncias quanto à condução da economia. Inconformado, desliga-se do governo e volta para a atividade guerrilheira, com o objetivo de “exportar a revolução” para a América Latina. Encontrará a morte na Bolívia, aos 39 anos.
Não importa, aqui, analisar em detalhe a conduta política de “Che”.
Trata-se, antes, de detectar aquilo que comove em sua história, aquilo que fez com que o filósofo francês Jean-Paul Sartre o considerasse, em 1960, como “o ser humano mais completo de nossa época”. Alguns traços de seu caráter são bastante evidentes: generosidade para com os pobres, altruísmo, espírito de aventura, desprendimento, fidelidade aos princípios, profundo sentido ético.
Qualidades raras, especialmente em nossa época, quando o neoliberalismo transforma a ganância em virtude, a hipocrisia em regra e o cinismo em modo normal de agir no mundo. Qualidades que é compreensível - seduzem aqueles que acreditam que a vida possa oferecer algo mais digno.
Se esses sentimentos, ainda que difusos, dão base à existência do mito “Che” - são o seu cerne, força e sentido -, é a indústria cultural que sabe transformá-los em mercadoria. É disso que essa indústria vive: da venda de sonhos em suaves prestações (assim como “Che”, também o líder negro Malcom X, apenas para citar um exemplo, foi, recentemente, transformado em grife por Hollywood). Do ponto de vista dos grandes centros de produção de imagem (TV, cinema, imprensa), não importa o conteúdo de sua luta política. Ao contrário, trata-se, apenas, de vender o mito, reedição de Superman, detentor de um poder secreto e sobre-humano (e, nessa medida, anulado enquanto força política eficaz: pode ser admirado e consumido, mas jamais levado a sério).
Ironicamente, mesmo aqueles que se dizem seguidores de “Che” participam do festim. É o caso do PCdoB, que lançou, em agosto, a “raspadinha comunista”, loteria instantânea na qual símbolos e figuras históricas ligadas ao comunismo valem dinheiro. Um Friedrich Engels vale cinco Guevara; a foice e o martelo, símbolos consagrados do comunismo, valem cem Karl Marx. Há algo de profundamente melancólico nisso, nessa leveza, nessa desfaçatez com que hoje se queima (ou se prostitui) aquilo que no passado inspirava respeito e admiração. “Vale tudo por dinheiro”, diz um conhecido empresário, dono de uma rede de televisão que mascateava em São Paulo quando Che lutava em algum ponto infernal na selva boliviana. Vigora a moral do mascate. Sinal dos tempos, sintoma de uma época.
Ernesto Guevara de la Sarna não era Superman. Foi um homem como outro qualquer. Mas era alguém que optou por uma vida repleta de aventuras, quando poderia ter sido um médico “normal”, numa pacata cidadezinha argentina. Tinha, como todo mundo, suas qualidades e defeitos. Mas não se conformou com a morna perspectiva de levar uma vida de classe média: lutou até o fim pelos seus sonhos e disso extraiu sua energia, sua força, sua conduta.
É certo, como disse o dramaturgo alemão Bertolt Brecht, que pobre é a nação que precisa de heróis: nenhum mártir ou líder pode substituir a ação dos cidadãos em defesa de seus interesses.
Mas também é certo que pobre é a nação que não tem heróis: eles são a síntese, a manifestação daquilo que determinada cultura produziu de melhor.
Ernesto “Che” Guevara foi um homem de seu tempo. Acima de tudo, foi um homem.
Boletim Mundo Ano 4 n° 5
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