Cristina Carletti
Londres é o meu lugar no mundo. Isso explica por que há dez fevereiros consecutivos passo minhas férias lá, embora os invejosos digam que é sintoma da mad cow disease (doença da vaca louca). Neste fevereiro, por exemplo, fui para Londres. Tudo muito bem; até a temperatura negativa foi refresco. O arrepio, quando veio, não foi de frio mas do pior tipo, já bem conhecido por lá: de repente, enquanto eu babava no show do Frank Black, uma super-bomba destruía vários blocos de apartamentos e escritórios, matando duas pessoas, mutilando dezenas, desabrigando centenas -felizmente pra mim, do outro lado da cidade.
Ninguém acreditou.
Eram eles de novo, o IRA, rompendo uma trégua de 17 meses, por conta de achar que o John Major estava fazendo corpo mole com os republicanos irlandeses. Não acompanhei os passos desse senhor nessa questão específica, mas acredito que tenham razão, porque até o partido dele o acha um frouxo. Então, vêm as imagens pela TV e aquela gente toda em estado de choque olhando suas ex-casas, ferida de estilhaço de vidro na melhor das hipóteses, perguntando-se por que mereceram aquilo, uma vez que a grande maioria, além de simples, é simpática à causa separatista. Mas os IRA não têm senso nem sensibilidade e mandaram dizer que era só o começo.
Alguns dias e vários alarmes falsos depois, estava eu na plataforma do metrô quando o alto-falante anuncia o fechamento das principais estações das principais linhas for security reasons. Tenho sangue genovês e não ia perder a passagem, por isso decidi ir de metrô para qualquer lugar, e de qualquer lugar eu seguiria a pé até o Strand, meu objetivo. Desci, digo, subi em Oxford Circus e peguei a Regent Street.
Dois passos adiante a polícia fecha a rua com grande escândalo, expulsa todo mundo -e aquilo é um mundo- para as ruas laterais e desvia o trânsito. Nenhuma explicação e ainda a barulheira de ambulâncias e bombeiros. Segui zonza pela ruazinha, mas então achei uma loja de roupas usadas, comprei uma galinha morta e me animei: voltei sorrateira para a Regent Street e avancei mais um tanto até a polícia me jogar noutra lateral. Nessa, achei uma confeitaria memorável.
Retomei o caminho no mesmo esquema, a polícia de novo, e assim cheguei não no Strand mas na esquina onde desativavam uma bomba dentro de uma cabine telefônica. Aquela cabine fica no meu trajeto para os cinemas e galerias... Não era remota a possibilidade de eu engrossar a galeria de mártires involuntários da causa alheia. Havia, claro, a chance de, vitimada, esta inocente inútil ser socorrida pelo Daniel Day-Lewis, irlandês ele mesmo, talvez passando por ali a inspecionar a obra dos patrícios. Mas naquela ocasião a brasileira que o Tom Cruise acudiu não tinha sido atropelada e eu ainda não acreditava em Deus.
O Strand, mais precisamente o bar onde encontro meus amigos do King’s College depois do expediente, apareceria em todos os jornais do mundo na segunda-feira seguinte. A vista do bar nas fotos ficou prejudicada pela carcaça do ônibus que explodiu na frente dele à noite. Dessa vez foi um dos IRA que empacotou mal a bomba e estourou com ela. O diabo que o carregue mas motorista e passageiros foram para a sala de espera do inferno, a UTI, muito esfolados. Vasculhando o apartamento do incompetente, a polícia descobriu lá muitas coisas interessantes, mas a melhor, na minha opinião, é a papelada detalhando os arredores das residências da rainha e do senhor primeiro ministro, o frouxo. Corre corre dos caminhões do exército despejando soldados nos ditos arredores. Isso demonstrou que o IRA estava se tornando seletivo, o que é digno de apreço. Mas, como eles não afirmaram que deixariam em paz o mortal comum, todos tratamos de continuar espertos.
Excessivamente espertos. No penúltimo dia das minhas voláteis férias, fui a uma das imensas lojas HMV. Desci ao subsolo atrás de um disco medonho que minha irmã encomendou e que eu decidi que, por ser medonho, ia achá-lo numa liquidação. A seção meio vazia, eu mais um sujeito garimpando ao som de uma falação interminável entre o que me pareceu ser Nara Leão e Tom Jobim. Acho que é o Anthology do pobre Jobim. Surge um funcionário da loja, um afro-britânico enorme - com perdão do pleonasmo - e começa a repor discos nas prateleiras. Nisso ele vira pra mim e pergunta: “Essa mala é sua?” Só aí é que eu vi a mala. Não, não é minha, e já olhamos os dois para o sujeito ao lado, em coro: “É SUA?” Também não. Recuamos os três, os olhos pregados na mala. Mas, antes que o instinto nos atirasse escada acima, o funcionário, com aquele vozeirão, gritou: “de quem é esta fucking mala!?!?!” Lá do fundo vem “o mala” proprietário, carregando aquele sorriso inteligente e dizendo “He, he, sorry”. Tanta adrenalina acionada tinha que servir pra alguma coisa, deve ter pensado o crioulo que, num pulo, pegou o cavalheiro pela gola e sacudiu tanto, mas tanto, até gravar a lição na memória rígida do extraviado.
E ainda me faltam nove meses até fevereiro...
Terror prefere as cidades
Terrorismo, segundo uma definição amplamente aceita, é uma ação violenta contra vítimas civis ou militares fora de serviço, com o objetivo de criar impacto e propagandizar certas idéias ou causas. Há várias formas de terrorismo: de Estado, de grupos étnicos, de seitas religiosas etc. O terrorismo urbano ocorre no entrecruzamento de dois processos relativamente recentes e fundadores da modernidade: de um lado, a formação das metrópoles; de outro, a introdução de novas tecnologias que permitem a rápida disseminação da informação (fundamental para criar o impacto desejado pelo terror).
A percepção da multidão como massa anônima, formada por indivíduos solitários nasceu com as metrópoles, na Europa em fase de industrialização do século XIX. A retina dos escritores foi a primeira a captá-la. Charles Baudelaire enxergou em Paris um ‘‘banho de multidão” e percorreu poeticamente o trajeto entre a aglomeração e a solidão. Edgar Alan Poe vasculhou o “tumultuoso mar de cabeças humanas” de Londres e Charles Dickens lamentou a ditadura do tempo útil e a supressão dos devaneios.
Karl Marx diria que o capitalismo criou comunidades aparentes, pois aquilo que agrega os homens nas cidades é também aquilo que os separa: o mercado, a disputa por lucros, empregos e salários.
Não por acaso, o terrorismo contemporâneo encontrou seu ambiente ideal nessa aglomeração de seres anônimos.
Nesse cenário, a incomunicabilidade entre os indivíduos –ao mesmo tempo vizinhos e estranhos- é a grande matriz do medo. Estupros, assaltos e homicídios, violência policial, engarrafamentos, pressões econômicas tudo contribui para manter os nervos à flor da pele. O pano de fundo é a percepção de que a vida humana nada vale, após os morticínios praticados nas guerras mundiais, nas incontáveis guerras civis e face à ameaça permanente do holocausto nuclear.
Nesse clima, a interrupção violenta da circulação urbana rotineira pela explosão assassina amplia a sombra da insegurança sobre o cidadão comum. Roma e Milão, atormentadas pelas bombas das Brigadas Vermelhas, nos anos 70, lacraram os guarda-volumes de aeroportos e estações ferroviárias. Madrid, alvo das ações dos separatistas bascos do ETA, acostumou-se a uma onipresente e pouco eficaz vigilância policial. Em Jerusalém e Tel Aviv, os suicidas do Hamas esvaziaram as ruas, ônibus e centros de compras nos fins-de-semana recentes. Londres viveu mais de uma década sob o espectro do IRA , mas respirava aliviada desde agosto de 1994, quando os separatistas católicos anunciaram uma trégua por tempo indefinido . O fim da trégua reinstala agora a lógica aleatória do terror.
Boletim Mundo Ano 4 n° 2
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