terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Diário de Viagem- Relatos do horror no país de Pinochet

A paisagem impressionante da Cordilheira dos Andes, com o Aconcágua na janela do avião, anunciava a chegada ao Chile. Fiquei recordando os motivos que sempre me levaram a evitar aquele país, de tão estranha geografia, espremido entre os Andes e o Pacífico. A leitura dos crimes da ditadura do general Augusto Pinochet, filmes como Missing, de Costa-Gavras, e A Casa dos Espíritos, baseado no livro de Isabel Allende, tinham deixado a imagem de um lugar marcado pela barbárie.
Mas, após assistir a O Carteiro e o Poeta, uma interpretação poético-cinematográfica da vida de Pablo Neruda, pensei que a terra dominada por Pinochet tinha também uma história de intensa vida cultural, marcada por hábitos e valores preservados ao longo dos séculos por camponeses e indígenas.
Essa intensidade se refletiu nos dois prêmios Nobel de Literatura conquistados pelo Chile: Gabriela Mistral, em 1946, e o próprio Neruda, em 1971.
Depois de tudo, e apesar de Pinochet, valia a pena conhecer esse país.
As décadas de 60 e 70 foram marcadas, na América Latina, pelo confronto entre os nacionalistas e os conservadores, estes vinculados aos interesses político-militares de Washington. A vitória foi quase sempre dos conservadores: além de Cuba, as exceções foram a década do governo sandinista na Nicarágua (1979-89) e o próprio Chile, durante o curto governo socialista de Salvador Allende (1970-73). O Chile era um dos raros países de longa tradição democrática, iniciada na década de 30. Nas eleições de 1970, a vitória coube à Unidade Popular, uma frente liderada por Allende que reunia socialistas, comunistas, radicais e democratas. Allende tornou-se o primeiro presidente socialista do continente que chegava ao poder pela via eleitoral, com apenas pouco mais de um terço dos votos.
Salvador Allende, um marxista especial
Allende foi um marxista especial. Defendia a convivência das reformas sociais com a democracia política. No poder, nacionalizou as minas de cobre e os grandes bancos, expropriou terras e aumentou salários. As reformas encontraram feroz oposição no Congresso. Latifundiários, financistas e industriais boicotaram impiedosamente o governo socialista.
As associações patronais, com apoio da classe média, trabalhavam para produzir o caos econômico.
Tramava-se, com o apoio de Washington, a desestabilização de Allende.
No Chile daquela época, vigorava o mito do profissionalismo das Forças Armadas, da sua subordinação  às leis e ao poder civil. No dia 11 de setembro de 1973, o mito desmoronou com o golpe militar que derrubou o presidente, liderado pelo comandante do Exército, Augusto Pinochet.
O Palácio de La Moneda, sede do governo, foi bombardeado.
Allende, de capacete e metralhadora, tentou resistir. No fim, suicidou-se no palácio em chamas (ou, pelo menos, esta é a versão oficial dos fatos). Nos dias que se seguiram ao golpe, instaurou-se no país um clima de terror e pesadelo. Milhares de pessoas foram conduzidas ao estádio Nacional, onde foram torturadas, mutiladas e, finalmente, assassinadas. Entre as vítimas mais conhecidas, estava o cantor Victor Jara, que teve suas duas mãos quebradas pelos torturadores. Contam aqueles que presenciaram seus últimos momentos que Jara ainda encontrou forças para cantar Unidos  Venceremos, o hino da Unidade Popular.
A ditadura de Pinochet durou quase dezessete anos. Os  assassinatos de opositores e as violações dos direitos humanos tornaram-se regra. A lista de mortos e “desaparecidos” não parou de aumentar. Os presídios receberam os sobreviventes. Pinochet foi e ainda é considerado persona non grata na maioria dos países.
Apesar da democratização, as sombras do terror de Pinochet ainda sufocam o Chile
Apesar do retorno à vida institucional, em 1990, o país não reconquistou a democracia plena. O Chile permanece sob a tutela de Pinochet, que segue sendo o Comandante em Chefe do Exército. Constatei logo que as ditaduras tornam as pessoas mais desconfiadas: os chilenos parecem ter medo das sombras. A população ainda teme o Dina (Departamento de Inteligência Nacional), mesmo que ele já tenha mudado de nome, para Serviço Nacional de Informação - curioso como a palavra inteligência é freqüentemente profanada por brucutus sanguinários.
Qualquer chileno com mais de trinta anos viveu intensamente a polarização ideológica do governo Allende. O país continua dividido. Não é difícil encontrar partidários do obscurantismo.
De uma senhora, elegantemente vestida e carregada de jóias, ouvi longos elogios para o chefe do Exército. Inflamada, ela dizia que Pinochet “erradicou o câncer do marxismo”, “salvou a tradição cristã” e “trouxe crescimento econômico”.
De fato, nos últimos anos o crescimento do PIB foi o mais rápido da América Latina e para 1995 se estima uma taxa de 8%. Claro que isso não garantiu melhor distribuição da renda: ao contrário, o modelo econômico concentrador tornou ainda mais evidente o “apartheid” social. Santiago impressiona pela quantidade de edifícios modernos, mas também pela divisão da cidade entre ricos e pobres.
A elite de origem criolla (brancos descendentes dos colonizadores espanhóis) mora nos “bairros altos”. Feições, roupas e hábitos são tipicamente europeus. Multiplicam-se os carros importados, os edifícios de arquitetura arrojada, as mansões, os jardins.
Nos “bairros baixos”, onde estão as favelas e as ruas carentes de estruturas sanitárias, os rostos arredondados e cabelos escuros evidenciam a origem indígena da maioria da população pobre. Os mestiços são 68% do país.
O nome de uma das principais avenidas de Santiago, nos “bairros altos”, é 11 de Setembro (data do golpe pinochetista). Passando por ela, comentei com o motorista do táxi como incomodava a denominação tétrica. Ele informou que o nome antigo voltará e que a data, feriado nacional até o ano passado, não será mais comemorada. Também deixou claro que a troca das placas não apagaria o passado.
Ao nos deixar na antiga casa de Pablo Neruda, onde hoje funciona uma fundação cultural, sorriu, cúmplice, e fez o sinal da vitória com os dedos, antiga saudação da Unidade Popular. Aquela casa, explica um jovem bem-humorado e irônico, foi invadida pelos ‘‘gorilas’’ de Pinochet na madrugada do golpe. Destruíram boa parte de seu acervo -objetos e obras de arte do mundo inteiro,reunidos durante anos pelo poeta.
Os derrotados de 1973 têm muito a contar. Muitos chilenos perderam parentes e amigos durante a longa repressão. Foram 30 mil assassinados nos seis meses seguintes ao golpe. O relato dos fatos pelos que viveram as atrocidades é diferente da leitura de livros: as pessoas não choram sobre estatísticas.
‘‘Ainda me lembro do matraquear das metralhadoras e das pilhas de cadáveres em Santiago’’ (dono de um restaurante, sobre o dia do golpe)
De uma fraternal garrafa de vinho, ouvimos comovidos a  memória da barbárie. O dono do restaurante nos contou que era criança no dia do golpe. Ele lembra o matraquear das metralhadoras e as pilhas de cadáveres que amanheciam nas ruas de Santiago. Naquela noite, ouvimos várias histórias pavorosas.
Mas aqueles homens e mulheres não perderam a alegria. Todos continuavam achando repugnantes as ditaduras, mas sabem que existem poetas e música, além do vinho e da boa comida. No aeroporto, poucos antes de embarcar de volta, lendo um livro do Neruda, encontrei essa poesia. Compartilho-a agora com vocês:
“Não só é a luz que cai sobre o mundo
a que alonga em teu corpo
sua neve sufocada, mas também se desprende
de tua claridade como se fosses acesa por dentro
Debaixo da tua pele vive a lua.”
Boletim Mundo Ano 4 n° 1

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