Na geopolítica israelense, as representações espaciais atuais prosseguem diretamente aquelas da Bíblia, cujos diversos livros guardam a memória de períodos históricos férteis em conflitos políticos e militares. Geo-ideologia. Nessas épocas antigas, o termo Israel tinha um duplo sentido: seja o espaço das doze tribos unificadas (...), seja o grupo de tribos do norte, cuja capital situava-se na cidade de Samaria. Ao sul de Jerusalém se estendia o reino de Judá (...). Os termos Judéia e Samária (Yehuda e Shomron) designam então regiões históricas. Eles assumem a função, desde 1967, de nomenclatura oficial entre os israelenses para designar o conjunto geopolítico que é a Cisjordânia.
(Michel Foucher, Fronts et frontières, Fayard, Paris, 1991, pág. 385)
Há dois povos, duas bandeiras e duas religiões na Terra Santa foram estas as palavras escolhidas pelo então chanceler Shimon Peres para saudar o mútuo reconhecimento entre Israel e a OLP (Organização para a Libertação da Palestina), selado em setembro de 1993.
Shimon Peres não é mais chanceler. Tornou-se o primeiro-ministro desde o assassinato de Itzhak Rabin, em novembro do ano passado, por um terrorista judeu. Como chanceler, Peres notabilizou-se pela habilidade demonstrada nas difíceis negociações de paz com Iasser Arafat e pelo horizonte luminoso -explicitado sempre que possível- de constituição de um mercado comum regional. Como primeiro-ministro, enfrentando o desafio posto pelo Likud (a oposição de direita) nas eleições gerais realizadas no final de maio, Peres bombardeou civis no Líbano, reimplantou os bloqueios de circulação entre as áreas autônomas palestinas e Israel, e anunciou a construção de cercas, guaritas e muros separando definitivamente os dois povos que compartilham a Terra Santa. No fundo, a sua campanha eleitoral consistiu em roubar algumas das principais bandeiras do Likud, cuja meta é a de congelar o “processo de paz” no estágio em que se encontra atualmente.
Peres foi empurrado pelas circunstâncias. A base popular de apoio ao seu Partido Trabalhista e ao processo de paz , ampliada pelo trauma nacional que foi o assassinato de Rabin, encolheu-se perigosamente desde os atentados brutais cometidos por facções do Hamas em março, que reinstalaram as chances de vitória eleitoral do Likud. As raízes sociais e políticas da força do Likud encontram-se na Guerra do Yom Kippur e no desencadeamento de uma ampla operação de colonização israelense dos territórios palestinos ocupados, nos anos 70. Desde essa época, a perspectiva expansionista de constituição de um “Grande Israel”, com a anexação definitiva da Cisjordânia e da Faixa de Gaza, tornou-se, para importante parcela da sociedade israelense, a linha de continuidade legítima do movimento sionista da primeira metade do século.
Mas, se o Likud fez da colonização dos territórios o eixo de seu programa, o Partido Trabalhista, por meios mais tortuosos, também engajou-se na via do expansionismo. No lugar dos “argumentos” bíblicos da direita, os trabalhistas, desde a Guerra dos Seis Dias, empregaram motivos de “segurança” para estimular a implantação de colônias ao longo do vale do rio Jordão e nos limites da Cisjordânia com Israel.
As 139 implantações - que abrigam uns 100 mil israelenses – na Cisjordânia e as 16 - com pouco mais de 3 mil colonos - na Faixa de Gaza foram o resultado das políticas conjugadas dos dois grandes partidos.
O Shimon Peres chanceler acenou com a possibilidade de uma reviravolta histórica, ao associar a paz, o reconhecimento dos direitos nacionais palestinos e o mercado comum. O Shimon Peres primeiro ministro, ao enrolar-se na bandeira da separação física entre os dois povos, ameaça todo o futuro do processo de paz e retorna ao diapasão do expansionismo. Esse retrocesso não é, apenas, um produto das circunstâncias de campanha eleitoral: ele reflete concepções enraizadas profundamente na história de Israel e do próprio Partido Trabalhista.
A paz e a separação física são como óleo e água: não há forma de misturá-los. Não é casual que, na moldura fornecida pelo retrocesso de Peres, estrategistas israelenses dos dois partidos tenham começado a se debruçar sobre uma “partilha definitiva” dos territórios, o que representa a negação dos direitos nacionais palestinos. Nas cartas geográficas delineadas por esses estrategistas, um futuro “Estado palestino” teria que se aninhar no interior de um mosaico fragmentado de áreas, separadas por “corredores de segurança” israelenses. Uma larga faixa da Cisjordânia, no vale do Jordão, interligada a Israel pelos “corredores”, permaneceria sob controle israelense . Esta proposta, explicitada pelo movimento suprapartidário A Terceira Via, corresponde à implantação de “bantustões palestinos”, sob a estreita vigilância do Exército de Israel.
As eleições gerais israelenses assinalam a transição para a etapa final do processo de paz, prevista pelos documentos assinados em 1993, em Washington. Junto com o estatuto definitivo da Cisjordânia e Gaza, a nova etapa envolve negociações sobre o futuro de Jerusalém.
A cidade santa de três religiões foi inteiramente anexada por Israel em 1967, e declarada sua “capital eterna e indivisível”. Há três décadas, governos dos dois partidos instalam novos bairros judaicos em torno do lado oriental da cidade, habitado por árabes palestinos. Mesmo assim, ainda hoje, Jerusalém é um espaço compartilhado por povos e culturas distintos, como foi Sarajevo antes da Guerra da Bósnia. Como em Sarajevo, a separação do que a história reuniu cobraria o seu tributo de sangue.
Meio século de sangue mancha a Terra Santa
A Palestina, região geográfica onde se situa atualmente o Estado de Israel, foi dominada por séculos pelo Império Otomano. Ao final da 1ª Guerra (1914-18), a região passou a ser um protetorado britânico. Nessa época, a grande maioria da população da Palestina era constituída por árabes , e os judeus, embora minoritários, viam sua população crescer em virtude do fluxo de imigrantes, originários da Europa. Eles chegavam imbuídos do sonho sionista de criar um Lar para o os judeus nas terras de onde seus ancestrais longínqüos teriam sido expulsos pelos romanos. Após a 2ª Guerra (1939-45), o fluxo de imigrantes de origem judaica se acentuou muito. A Grã-Bretanha se revelou incapaz não só de conter este fluxo, mas também de impedir os crescentes confrontos entre as duas comunidades. Londres resolveu deixar a Palestina, passando o problema para a ONU.
Em 1947, as Nações Unidas apresentaram um plano de partilha da Palestina em dois Estados, um árabe e um judeu. Em maio de 1948, numa tumultuada sessão da Assembléia Geral, o plano foi aprovado. Imediatamente os judeus proclamaram o Estado de Israel, e os árabes foram à guerra. A derrota dos árabes, em janeiro de 1949, trouxe importantes mudanças territoriais. O Estado árabe da Palestina, desenhado sobre os mapas da ONU, desapareceu sem nunca ter existido. Os territórios a ele destinados foram incorporados a Israel (Galiléia) ou colocados sob a “proteção” da Jordânia (Cisjordânia) e do Egito (Faixa de Gaza). Aos árabes da Palestina restou permanecerem em Israel na condição de cidadãos de segunda classe, ou migrarem para países árabes vizinhos, na condição de refugiados.
A Guerra dos Seis Dias, em junho de 1967, desenhou os contornos políticos da Palestina atual. A vitória de Israel resultou na conquista de uma série de territórios. Do Egito, Israel tomou a Península do Sinai e a Faixa de Gaza; da Jordânia, a região da Cisjordânia; da Síria, as colinas de Golã. Amparada por Washington e contrariando resoluções da ONU, Israel se recusou a restituir os territórios ocupados. A solitária exceção foi o Sinai, devolvido ao Egito de Anuar Sadat em troca da assinatura dos acordos de paz de Camp David, em 1979. Antes disso, em 1973, a Guerra do Yom Kippur assinalou a última e frustrada tentativa de uma coalizão árabe formada pelo Egito e pela Síria, bater Israel no campo de batalha.
Entre a Guerra dos Seis Dias e o acordo de paz entre Israel e a OLP, em 1993, o ódio deitou raízes na Terra Santa. Nas décadas de 60 e 70, a OLP estruturou-se, empunhando a bandeira da criação de um Estado árabe-palestino em toda a Palestina histórica. Durante 30 anos, Israel e OLP se encararam como inimigos mortais. Na década de 80, sob o influxo da Intifada, o radicalismo islâmico assumiu um lugar na política regional através do Hamas.
Seus passos iniciais, ironicamente, contaram com a benevolência de um Israel que apostava no enfraquecimento da OLP. Desde 1967, sucessivos governos israelenses incentivaram a instalação de colônias judaicas nos territórios ocupados. Nas miseráveis aglomerações urbanas de Gaza, em 1987, eclodiu a revolta espontânea de jovens palestinos contra a ocupação.
A Intifada, ou “revolta das pedras”, alastrou-se para as cidades e vilas da Cisjordânia.
Em setembro de 1993, o aperto de mãos entre um contrafeito Rabin e um entusiasmado Arafat, na Casa Branca, em Washington, abriu novo ciclo na política do Oriente Médio. O pano de fundo dos acordos, negociados secretamente em Oslo (Noruega), tinha se tecido pelo fim da Guerra Fria, pela neutralização do Iraque na Guerra do Golfo e pela vitória eleitoral do Partido Trabalhista em Israel. A moderação crescente de Arafat e o mal estar produzido pela Intifada na sociedade israelense conspiravam contra os apelos do ódio.
A pilha de documentos assinados em Washington delineava apenas os passos iniciais do que seria chamado um “processo de paz”. Os palestinos teriam que se contentar, numa primeira etapa, com a autonomia limitada na Faixa de Gaza e na cidade de Jericó, na Cisjordânia. Dois anos depois, em setembro de 95, o acordo foi aprofundado, estendendo-se a área de autonomia palestina para outras cidades da Cisjordânia. Sob o pretexto dos atentados terroristas do Hamas em Jerusalém e Tel Aviv em março, Israel continua a retardar o cronograma da retirada das tropas de Hebron. Mesmo assim, no final de abril, a OLP revisou a sua Carta Política, suprimindo as referências à destruição de Israel.
Boletim Mundo Ano 4 n° 3
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