Primeira eleição presidencial livre e direta na história multissecular da Rússia acontece sob os signos da recessão e da exacerbação do nacionalismo
Poucos acreditavam, mas a Rússia chegou lá. A 16 de junho, pela primeira vez em uma história de meio milênio, os cidadãos poderão eleger livremente o chefe de Estado. As pesquisas de opinião não são muito confiáveis, e os institutos exibem números bastante diferentes, que também oscilam a cada semana. Apenas dois candidatos estão no páreo: o presidente Boris Yeltsin e o candidato do Partido Comunista, Guennadi Zyuganov. O equilíbrio entre eles e a dispersão de partidos e candidatos sugerem que as coisas caminham para uma definição no segundo turno, a 30 de junho.
O retrospecto confere favoritismo a Zyuganov. O Partido Comunista, que ressurgiu das cinzas, reuniu 21% dos votos - o dobro do segundo colocado, o Partido Liberal Democrata do ultra-nacionalista Vladimir Jirinovski - nas eleições parlamentares de dezembro passado. Na ocasião, Yeltsin parecia enterrado, junto com as reformas econômicas e a cooperação política com o Ocidente. Agora, poucos meses depois, o quadro mudou de cores.
Não é fácil entender a recuperação de Yeltsin, pelo menos à luz dos indicadores econômicos e sociais. O PIB russo continuou em queda em 1995, encolhendo 4%. A produção industrial estabilizou-se há dois anos, mas em um patamar que é pouco mais da metade do de dezembro de 1991, momento da implosão da URSS. Os salários reais, embora tenham conhecido pequena recuperação desde o início de 1995, continuam bastante abaixo dos níveis de 1991. Apenas os surtos de hiperinflação de 1992-94 parecem ter sido controlados, ao menos provisoriamente.
Crises recessivas menos intensas foram suficientes para reconduzir os comunistas ao governo em Estados do antigo bloco soviético no leste europeu: na Hungria, em maio,e na Bulgária, em dezembro de 1994; na Polônia, com a derrota de Lech Walesa, em novembro de 1995.
Há diferenças cruciais entre a situação russa e a desses países. A mais importante reside nos significados da palavra “comunista” . Na Europa central, os antigos partidos comunistas mudaram seus nomes e suas almas os partidos sucessores, que se encontram de volta ao governo, reafirmam as políticas de adesão à União Européia e à Otan, e prosseguem, ainda que com cautela, a transição para a economia de mercado. Na Rússia, Zyuganov lidera um Partido Comunista fiel a seu próprio passado e a seu velho nome. Talvez se encontre aí uma parte da explicação para a recuperação de Yeltsin.
Toda a turbulência dos últimos anos não modificou, no essencial, o curso das reformas econômicas liberalizantes de Yeltsin. Amparado por generosos empréstimos do Fundo Monetário Internacional, o presidente imprimiu ritmo forte às privatizações: hoje, cerca de 80% da mão -de- obra industrial trabalha em empresas soviéprivadas, contra praticamente zero há pouco mais de três anos. O renascido Boris beneficia-se por isso do apoio ocidental, comprovado pela recente reunião do G-7 (grupo das sete maiores economias do mundo) em Moscou, na qual Bill Clinton e o alemão Helmut Kohl declararam abertamente a sua preferência. Num segundo turno, ele provavelmente teria o apoio integral de Grigory Yavlinsky, o líder reformista mais bem situado nas pesquisas, disputando o terceiro lugar com o general aposentado Alexander Lebed e o histriônico Jirinovski. Zyuganov, ao contrário dos colegas “comunistas” da Europa central, passou toda a campanha vituperando contra as reformas. Há, claro, muita retórica populista no seu discurso, e no poder ele teria que se conformar com os detalhes da dura realidade econômica. Mas, com certeza, um governo do Partido Comunista representaria importante reviravolta no programa de privatizações e uma retomada de funções abandonadas pelo Estado.
A prova dos nove não é, porém, a economia, mas a política externa. Nesse terreno, em que os Estados definem o seu lugar no mundo, as diferenças entre os pretendentes são muito menores do que aparentam.
Zyuganov proclama que fará da Rússia, de novo, uma superpotência, reconstruindo a velha União Soviética. Uma resolução recente do Parlamento, meramente simbólica, revela que há uma maioria política favorável a essa meta. Mas Yeltsin não fica muito atrás. O presidente reitera, todos os dias, que a Rússia não admite a expansão da Otan para o leste. Voltou há pouco de uma viagem à China na qual anunciou uma “parceria estratégica” Moscou-Pequim e assinou um tratado para o aprofundamento dos laços políticos e econômicos com a Belarus. A guerra de extermínio que conduz na Chechênia atesta o seu apego à unidade territorial russa. Afinal, não é por acaso que o general Lebed e o intragável Jirinovski terão muitos votos: na Rússia, aparentemente apenas Mikhail Gorbatchev e a meia dúzia de eleitores que o seguem recusam a cartilha do nacionalismo e a sedução da “Grande Rússia”.
Ferocidade marca combates na Chechênia
Um novo e estranho nome entrou no vocabulário político no dia 2 de novembro de 1991, quando o governo, liderado por Djokhar Dudaiev, proclamou a independência: Chechênia. Entre dezembro de 1994 e março de 1995, o mundo acompanhou estarrecido o assalto das tropas russas à capital, Grozny, ocupada após bombardeios aéreos.
A Chechênia é uma das 20 repúblicas que, com a Rússia, compõem a Federação Russa. Localizada nas vertentes setentrionais da cordilheira do Cáucaso e nos vales drenados por rios que deságuam no mar Cáspio, abriga uma população de um milhão de habitantes. Cerca de 60% são etnicamente chechenos, povo descendente de pastores caucasianos que no século XVIII abandonaram o cristianismo para aderir ao Islã.
O conflito na Chechênia assumiu a forma de guerra de guerrilhas desde a ocupação de Grozny.
As forças separatistas, a partir de esconderijos nas montanhas do sul, fustigam as tropas russas. Em abril, de olho nos eleitores, Yeltsin anunciou um cessar-fogo, que não é efetivo no campo de batalha.
Não há indícios de solução negociada.
Boletim Mundo Ano 4 n° 3
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