Cecília Nascimento
A pele bronzeada do índio brasileiro Tiuré Poti, 48 anos, combina pouco com a paisagem fria do inverno canadense.
Desde 1989, porém, quando pediu asilo político ao governo do país, ele passou a conviver com a rotina gelada das ruas da cidade de Montreal. Desde a Segunda Guerra Mundial (1939-45), o Canadá já aceitou 800 mil refugiados, mas Tiuré foi o primeiro indígena a quem o governo concedeu refúgio.
A idéia de viver no Canadá surgiu depois que ele sofreu ameaças de morte pela Polícia Militar da Paraíba, onde havia criado um centro visual indígena, em 87. O centro ficava na cidade de Baía da Traição, na região litorânea do Estado, onde vivem descendentes dos índios Potiguara, tribo de origem de Tiuré. Nesse centro, ele exibia documentários que vinha produzindo desde a década de 70, quando ganhou uma câmera da Fundação Nacional do Índio (Funai).
O primeiro documentário retratava a devastação do litoral paraibano para a implantação de engenhos que serviriam ao Programa Nacional do Álcool (Proálcool), na década de 70. A partir dessa experiência, Tiuré passou a registrar aspectos do cotidiano de várias tribos brasileiras, entre elas a dos Parkatejê, que vive às margens do rio Tocantins, no sul do Pará. Durante dez anos, ele viveu na aldeia, fazendo diversos documentários.
“Mekaron” (1993), que fala da exploração de castanha de caju na aldeia pela Funai, participou da mostra “Traveling with the Ancients” (Viajando com os Anciãos), no Museu de Arte Moderna de Nova York, realizada em 94.
Atualmente, Tiuré recebe recursos do Conselho das Artes do Canadá (equivalente ao Ministério da Cultura no Brasil) para realizar seus trabalhos e já participou de diversas mostras de vídeo e cinema por todo o país.
Por que você escolheu o Canadá para pedir asilo ?
Tiuré - Eu já conhecia o país desde 87, quando ganhei uma bolsa do governo daqui para desenvolver um estudo na Universidade de Saskachewan sobre a imagem do índio na mídia. No final da década de 80, a imprensa internacional lidava com uma imagem estereotipada do índio brasileiro, associando-o somente a tribos da Amazônia, como se não existissem outras tribos no país. Ganhei a bolsa de pois que alguns professores de antropologia da Universidade de Montreal viram um dos meus vídeos exibidos na Cidade do México, onde participei de um festival de vídeo sobre temas indígenas. Voltei no ano seguinte para Baía da Traição para cuidar do centro visual que eu havia criado lá. Um ano depois, um incêndio suspeito destruiu a sede do centro.
Foi a Polícia Militar quem botou fogo, pois eu andava denunciando violência policial contra os índios no Estado.
Fui torturado e ameaçado de morte quando denunciei que tinham sido eles os autores do crime. Nessa mesma época, fui convidado a participar de um novo festival de vídeo no Canadá. Vim para o festival e decidi pedir asilo.
Como foi seu processo de adaptação ao país ?
Tiuré - Não pude sair do país por três anos, período de duração de julgamento do processo de refúgio. Foi difícil, pois o país é culturalmente muito diferente e o clima é terrível. São seis meses de frio intenso, neve e pouca luz. Recebi o visto de residente permanente depois de mostrar aos agentes do governo vasto material de imprensa e relatórios da Anistia Internacional denunciando violações de direitos contra os índios no Brasil. Minha primeira impressão sobre o Canadá é de que havia uma nação indígena reconhecida, com direitos iguais aos outros cidadãos, o que não é verdade. Em 1991, quando eu já estava aqui, veio a crise de Oka e passei a entender melhor a realidade dos índios dessa região.
Você pretende viver no Brasil novamente ?
Tiuré - Quando o presidente Fernando Henrique assumiu o governo, pensei que fosse lutar pela distribuição de renda, o que seria coerente com seu discurso socialista. Acho, porém, que o país vem piorando socialmente.
No início deste ano, estava em Olinda e vi garoto de 12 anos fazendo um assalto. Ele mal conseguia segurar a arma. Olha onde chegamos ! Então, depois de conviver com uma sociedade mais igualitária, é muito difícil voltar a viver lá, onde a vida não vale nada.
Foi o Canadá, e não o Brasil, o país que deu oportunidade para eu me expressar como artista e cidadão. Não pretendo voltar a viver lá.
O fato de você não querer mais viver no Brasil vai modificar seu trabalho ?
Tiuré - Nunca deixarei de ser um índio brasileiro, mesmo vivendo aqui.
Identidade indígena é o que você carrega da vivência na comunidade, é sua ascendência e luta pelos direitos dos índios.
Estou escrevendo um roteiro de longa metragem autobiográfico chamado “Krua”, que significa flecha na língua dos Parkatejê. É uma leitura do final do século do ponto de vista indígena, onde vou abordar temas como a relação dos índios de Chiapas (Mexico) com o Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta). O projeto envolve filmagens no Brasil e no Canadá.
Você tem acompanhado o trabalho do Movimento dos Sem- Terra (MST) ?
Tiuré - O Brasil é um grande campo de refugiados e o MST é o melhor movimento de reivindicação que já existiu para distribuição de renda, que é a base da justiça social. O país tem uma distribuição de terra das piores do mundo. Como pode aquela imensidão de terra e as pessoas morrerem de fome ?
A crise de Oka
De acordo com o último censo, feito em 1991, há cerca de 1 milhão de aborígenes no Canadá, entre índios e esquimós. Desde 1982, eles criaram a Assembléia dos Primeiros Povos, que reúne representantes de 633 comunidades.
Um dos principais objetivos da entidade é lutar, junto ao governo, pela demarcação de terras, uma vez que milhares de conflitos entre índios e fazendeiros acontecem todos os anos, muitos deles violentos.
O caso mais famoso nos últimos anos foi a Crise de Oka, em junho de 1990. Durante 78 dias, índios Mohawks, que moram no sul da província de Quebec, fronteira com os Estados Unidos, bloquearam estradas para barrar a construção de um clube de golfe sobre um cemitério da tribo. As terras ainda não estavam demarcadas e o governo canadense interveio no caso a favor dos construtores do clube. Durante os conflitos, um policial morreu e vários indígenas foram presos, abrindo espaço para a construção do campo .
Boletim Mundo Ano 4 n° 6
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