José Arbex Jr.
Cada vez que morre tragicamente uma figura pública nacional artistas (como os integrantes do Mamonas Assassinas), políticos (Tancredo Neves, por erro médico; Ulysses Guimarães, na queda de seu helicóptero) ou esportistas (Ayrton Senna, por falha mecânica)- o Brasil pára. O país fica hipnotizado pelo espetáculo fúnebre: o velório, os depoimentos de amigos e familiares, as cenas dos principais momentos da vida do defunto, as avaliações sobre o vazio que, fatalmente, será produzido pela sua ausência. Até que, finalmente, chega o grande momento: a marcha apoteótica rumo ao cemitério, quando a encenação da dor atinge o auge. Chora-se, então, a ‘‘luz que se apaga’’, o desaparecimento do ‘‘patriota que deu o melhor de si à nação’’, o fim do jovem que ensinou que ‘‘o Brasil poderia ser melhor do que o Primeiro Mundo’’.
Sobra a sensação de que o destino, mais uma vez, foi injusto com o Brasil. Justo agora, quando parecia que iríamos ‘‘chegar lá’’, a Senhora das Sombras vem ceifar a esperança de um futuro melhor. Os mortos glorificados como heróis são a personificação dessa incessante e sempre frustrada esperança no amanhã, anunciada já no hino nacional: ‘‘espelha o teu futuro essa grandeza’’. A grandeza está eternamente projetada em algum momento que virá, não se sabe nem como nem quando mas virá. Disse um celebrado cronista que o Brasil está ‘‘condenado a ser grande’’.
O defunto celebrado é o herói que encarna essa certeza. É por essa razão que todos ficamos hipnotizados e tristes com as cerimônias fúnebres. Mesmo gente que mal tinha ouvido falar em Tancredo e Ulysses, ou que odiava Fórmula-1, ou ainda que achava os Mamonas mais um exemplo de cretinice -mesmo esses experimentaram uma sensação de perda. O que estava em questão, em cada um desses momentos, não era a perda do personagem propriamente dito, mas o fato de que sua morte, explorada pela mídia, colocava em ação o mito da grandeza esperada e nunca cumprida. O defunto servia apenas de ícone ao mito. É como no caso dos santos católicos. Nada sabemos sobre suas vidas, muitas vezes sequer conhecemos suas origens: o que importa é o tipo de milagre que ele opera.
E como a mídia opera essa transformação? Como ela fabrica mitos a partir de homens comuns (famosos sim, mas comuns)? Os velórios da mídia apagam a humanidade dos novos heróis. Eles não pecaram ou, se o fizeram, não foi em benefício próprio. Não tinham ambições pessoais sua maior ambição era servir à pátria. Nunca eram autoritários se tinham ‘‘explosões’’, isso se devia à ansiedade em cumprir uma determinada tarefa cívica. Corruptos? Nem pensar quando, em suas atividades, favoreceram amigos e familiares, isso se deve ao fato de que no Brasil esta é a única forma de fazer política.
A razão para sua dês humanização pela mídia é simples: os heróis têm que ser sobre-humanos, ou não seriam capacitados a realizar a tarefa titânica de transformar o país. De outra forma, eles não poderiam representar a grandeza sempre adiada para o amanhã. Mesmo no caso do anti-heróico Mamonas, sua grande ‘‘explosão’’ comercial (os tais 2 milhões de discos vendidos em sete meses) foi pretexto para colocá-los no mesmo patamar dos Beatles, a maior banda de rock do século.
Os jovens de Guarulhos adquiriram, assim, dimensão universal, como convém a um mito. As suas qualidades menos ‘‘heróicas’’, como a irreverência, o português errado, o desleixo-tudo servia para realçar a suposta grandeza da banda.
Mas com isso tudo apenas colocamos o problema. Não sabemos, ainda, qual o interesse da mídia em produzir heróis, nem as razões pelas quais a mídia faz isso com o consentimento da opinião pública.
Comecemos pela mídia: mito vende, é um bom empreendimento comercial. Cada segundo de transmissão de cerimônia fúnebre vale uma fortuna. Seus nomes e imagens se transformam em grife, em selo de qualidade, em marca em livros, filmes, camisetas, perfumes, canetas. Para além dos interesses comerciais, os mitos também são úteis porque eles simplificam a realidade. Historicamente, os mitos são anteriores à filosofia. Quando os homens ainda não tinha formulado sistemas lógicos complexos para explicar o mundo, eles utilizavam figuras mitológicas. Cada emoção, desejo ou sensação era representada por um deus (basta lembrar o panteão greco-romanos: Afrodite, o amor erótico; Apolo, a harmonia geométrica; Zeus, a justiça e assim por diante). Os homens explicavam suas ações e narravam o mundo a partir dos mitos.
É o mecanismo das telenovelas: cada personagem personifica um grupo de qualidades. Fica fácil identificar o que é o ‘‘bem’’ e o ‘‘mal’’, o ‘‘certo’’ e o ‘‘errado’’. Por esse processo de simplificação, a mídia adquire o direito de narrar o mundo de acordo com seus próprios interesses e pontos-de-vista (mirem-se no exemplo de fulano, para o bem do país!). É a mídia que narra o nosso mundo, não nós . Damos à mídia esse direito quando nos deixamos hipnotizar pelo mito, essa figura inacessível, sobre-humana. Nunca teremos a chance de ter o poder de ação de Tancredo ou Ulysses, a maestria de Senna, a genialidade eufórica de Dinho. Eles são cidadãos e nós apenas espectadores. Eles são o Olimpo, nós somos o quintal.
Eis o grande problema do mito: ele nos transforma em seres inúteis, agentes passivos, telespectadores de telenovelas.
E nós? Por que aceitamos isso? Por que ainda esperamos o Antônio Conselheiro que fará o mar virar sertão, o Grande Pai Getúlio Vargas que vai garantir nossos direitos trabalhistas, o messias que vai levar o Brasil ao Primeiro Mundo com um só golpe de caratê?
Em grande parte, somos assim porque não há, no Brasil, aquilo que se convenciona chamar sociedade civil organizada.
O cidadão comum não encontra canais de ação e participação para fazer valer a sua voz. Começa pelo fato de que a imensa maioria dos brasileiros (cerca de 80%) é analfabeta e miserável, sequer tem noção de seus direitos e deveres. Nunca foi sedimentada neste país uma prática de reuniões de pessoas para lutar em defesa de seus interesses -em comitês e associações de bairro, de escolas, de empresas etc. Os veículos da mídia são propriedade de algumas famílias; os sindicatos são instrumentos de interesses partidários, os partidos são associações de pessoas que nem sempre têm interesses eticamente legítimos ou toleráveis. O governo só se lembra de que existe uma nação em épocas eleitorais.
Se não somos capazes de tomar em nossas mãos o nosso destino, só nos resta esperar que ‘‘alguém’’ de fora resolva tudo por nós. Como ninguém nunca resolve nada -é óbvio-, só nos resta chorar aquele que teria resolvido tudo, se não tivesse morrido no meio do caminho.
Pobre do país que precisa de heróis, disse, certa vez, o dramaturgo alemão Bertolt Brecht. Alguém discorda?
Deus e o Diabo na terra da mídia
Na capa de sua edição de 26 abril de 1989, a revista Veja noticiou o fato de que o cantor Cazuza havia contraído o vírus da Aids. O próprio cantor sabia ser portador do HIV desde 1987, e havia admitido que estava contaminado. Cazuza representou, à época, algo ‘‘novo’’ na cultura nacional: era uma celebridade que estava condenada a uma morte nada ‘‘heróica’’. Ele não desapareceria repentinamente, em algum súbito desastre. Não. Ele teria um doloroso tempo para metabolizar aquilo que todos sabemos mas tentamos apagar: a consciência de sua condição de simples mortal.
A capa da revista, nitidamente, trata Cazuza como um ‘‘maldito’’, alguém marcado pela peste: o texto -‘‘uma vítima da Aids agoniza em praça pública’’ tem a dupla função de noticiar a tragédia que vitimou o cantor e também de ampliar a exposição de sua agonia ao mundo. A foto, absolutamente chocante, mostra um ser que definha, que morre lentamente, em contraste com a imagem de vitalidade, brilho e simpatia que Cazuza transmitia.
A sugestão da capa é óbvia: a peste, por si só, nega a Cazuza o direito até mesmo à privacidade de sua dor, torna-o ‘‘culpado’’, indigno, exatamente como no século XIV, auge da obscura Idade Média, os ‘‘empesteados’’ eram segregados, expulsos das cidades, acusados de estarem sob posse demoníaca.
Em total contraste com esse quadro, a capa de uma outra edição da Veja, de 13 de março de 1996, traz um rapaz no auge da vitalidade e saúde trata-se de Dinho, o líder os Mamonas Assassinas-, com os dizeres ‘‘a injustiça da morte no auge’’. Dinho não é um ‘‘maldito’’. Sua morte -diz a capa- foi ‘‘injusta’’ (mas haverá alguma morte ‘‘justa’’?), causada por um acidente, pela máquina, exatamente como no caso de Ayrton Senna, ou, com ainda maior semelhança, no de Ulysses Guimarães. Dinho faz agora parte de uma linhagem heróica, talvez inaugurada por Ícaro, que encontrou seu destino na relação mítica entre homem e máquina.
Sintomaticamente, a capa com Cazuza omite qualquer dado biográfico sobre o cantor. Não diz, por exemplo, sua idade (no caso da capa com Dinho, ficamos sabendo que ele tinha 25 anos) nem que ele era líder da banda Barão Vermelho (no caso de Dinho, somos informados de sua relação com os Mamonas Assassinas).
A história de Dinho, o herói suburbano que sucumbiu à máquina, é celebrada. Já o passado de Cazuza, o garotão homossexual e drogado de classe média alta do Rio, é apagado, negado pelo instante de tragédia. Ninguém disse isso, mas fica a sensação de que talvez a morte de Cazuza, o pestilento, tenha sido por sua própria ‘‘culpa’’. Afinal, sua tragédia pessoal foi causada pela Aids -isto é, por sexo e drogas, ou seja, pela busca excessiva de prazer: justamente o passado ‘‘negro’’ que não pode ser celebrado.
Pior ainda: a morte por Aids reaviva a grande ferida do mundo contemporâneo -a impotência da ciência face à morte. Nenhuma ‘‘culpa’’ poderia ser maior neste final de milênio, em que a ciência e a tecnologia disputam com Deus o benefício da fé dos simples mortais.
Agenor de Miranda Araújo Neto, ou Cazuza, o principal letrista da geração anos 80 do rock brasileiro - autor de sucessos como Bete balanço, Maior abandonado, Codinome beija-flor e O Tempo não pára, morreu em 1990, aos 32 anos. Cazuza não serve como herói: sua história é a negação do mito da onipotência. Ironicamente, ele próprio antecipou seu destino, com um de seus versos mais fortes: ‘‘meus heróis morreram de overdose / e meus inimigos estão no poder / ideologia - eu quero uma pra viver’’ .
Que os mortos descansem em paz.
Boletim Mundo Ano 4 n°2
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