“O que não falta na História do Brasil são heróis: Cabral, o que descobriu; Martim Afonso, o que colonizou; Anchieta, o que catequizou; Paes Leme, o que desbravou; Calabar, o que traiu; Tiradentes, o que antecipou; D .Pedro I, o que gritou; D. Pedro II, o que dançou; princesa Isabel, a que redentou; Caxias, o que espadou; Deodoro, o que proclamou; Oswaldo Cruz, o que saneou; Santos Dumont, o que voou; Bilac, o que obrigou; Getúlio, o que se matou; Pelé, o que marcou , e Roberta Close, a que mudou... Para cada herói uma marca: os passos de nosso atraso.”
(Martin Cezar Feijó)
Estrepolias, malandragens, sacanagens: palavras recorrentes na história da gente tupiniquim. De fato, uma certa marca de identidade quando se fala em Brasil.
Parece até que foram criadas para batizar certos “tipos” muito fortes da galeria nacional, como o baiano poeta barroco Gregório de Matos (o “maldito” que merecidamente ganhou a alcunha de “Boca do Inferno”), ou o diabólico Leonardinho, de Memórias de um Sargento de Milícias. E, claro, o grande personagem mítico brasileiro, Macunaíma, ‘‘herói sem nenhum caráter’’, eterno adolescente preguiçoso, sensual e oportunista que somente adquire grandeza após a morte -quando vira constelação.
A ‘‘estrelização’’ dos mortos -em especial dos artistas e figuras públicas- parece, aliás, ser marca registrada da cultura tupiniquim. Ayrton Senna, Ulysses Guimarães, Tancredo Neves -só para lembrar os casos mais recentes- brilham no cosmo nacional.
Como o próprio Macunaíma, viraram constelação são quase puros, quase deuses. É como se a morte tivesse o dom de apagar os seus pecados, suas falhas, sua humanidade e os transformasse em algo transcendente, uma promessa de redenção. É como se depois de mortos eles pudessem dar ao Brasil a ‘‘luz’’ que não deram enquanto vivos.
Essa tendência da cultura nacional é tão forte que não perdoou sequer os cinco Mamonas Assassinas. É muito provável que eles dariam gargalhadas se alguém lhes dissesse que virariam santos depois de mortos. Talvez até compusessem uma nova sátira.
Mas o improvável, o absurdo aconteceu pasmem, até com eles, também filhos, como Leonardo, “de uma pisadela e dum beliscão”.
Cinco Leonardinhos, anti-heróis: a comparação não é gratuita. Ainda que um tenha saído do folhetim de Manuel Antônio de Almeida e os outros, do programa do Gugu, eles se irmanam no elemento satírico, na predisposição para o riso. Agiam sem solenidades e sem preocupações de ordem política ou moral. Eram a reedição pop de Macunaíma, nascidos numa anti-Amazônia chamada Guarulhos, ou a encarnação por que não?- dos “Skrotinhos” do cartunista Angeli. Eram personagens que se colocavam além do bem e do mal, em busca constante de novas vítimas para o “escracho”, o que incluía eles próprios (um dos componentes da banda era um cruelmente satirizado ‘‘baiano’’, e a Brasília amarela fazia parte do universo familiar da banda). Eles queriam apenas é se divertir, falando a língua errada do povo, a que ouviam em casa e no bairro, a sua própria língua errada,“que é a língua certa do povo” (Manuel Bandeira).
Ainda sob o impacto do trágico destino dos cinco Mamonas, esta edição procura refletir sobre esse aspecto tão fascinante da vida nacional a necessidade sempre renovada de ampliar sua constelação de mitos e heróis, ainda que sejam apenas novos Macunaímas -que logo serão, inevitavelmente, transformados em objeto de anedotas.
Emília do Amaral, especialista em Comunicação e Expressão, discute a postura zombeteira dos garotos de Guarulhos, e a vontade que temos de “deletar essa perda, contando e recontando o que sucedeu na vertigem que foi a vida, paixão e morte daqueles meninos pobres, que louvaram Santos Dumont”. Para ela, a extraordinária trajetória do grupo e a brutalidade de seu desaparecimento fez com que cada um de nós tentasse recriar toda a história, para tentar melhor degluti-la, compreendê-la, metabolizá-la. Cada um de nós foi, subitamente, transformado em narrador.
Boletim Mundo Ano 4 n° 2
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