A primeira eleição multirracial da história da África do Sul assinala, formalmente, a dissolução do Estado africânder erguido sobre o alicerce do apartheid. A nova Constituição provisória - em vigor a partir do pleito parlamentar de 26,27 e 28 de abril - estabelece que o poder emana da vontade dos cidadãos, independente das divisões étnicas que separaram brancos, mestiços, negros e asiáticos. A estrutura de governo assenta-se sobre um Parlamento composto por duas Casas: a Assembléia Nacional, eleita por representação partidária nacional, e o Senado, composto por representantes das nove assembléias provinciais. A presidência cabe ao partido dominante no Parlamento e o Gabinete se compõe por ministros escolhidos proporcionalmente pelos partidos com um mínimo de 20 cadeiras. Uma nova divisão regional, federativa, cria nove províncias e dissolve os bantustões .
O governo emanado das eleições representa uma coligação compulsória do CNA de Mandela, detentor da ampla maioria do eleitorado, com o Partido Nacional de Frederik De Klerk, o segundo mais votado. Esse governo deve conduzir a segunda etapa da transição: os dois anos nos quais o Parlamento elaborará uma Constituição definitiva. A moldura econômica do país pouco será alterada: o controle do capital, das grandes empresas e das terras pela elite branca, consolidado por séculos de dominação política e territorial (v. matéria à pág. 7), foi assegurado nos últimos anos pelas estratégias de privatização das empresas públicas, reorganização jurídica das multinacionais com sede na África do Sul e remessa de capitais para o exterior.
O Estado africânder baseava-se na noção de etnia. O novo Estado sul-africano baseia-se na noção de cidadania. Os sul-africanos são iguais perante a lei, por mais diferentes que sejam quanto ao nível de renda e à inserção nos mercados de trabalho e consumo. Esse pressuposto remove o pilar do apartheid - a segregação étnica - e o seu instrumento geográfico e territorial - os bantustões .
Antes da eleição, uma onda revolucionária já varria os bantustões. Em março, o CET (Conselho Executivo Transitório, formado pelo Partido Nacional e pelo CNA) assumiu a administração de Bophutatsuana, depois de uma revolta popular contra o presidente local, o líder tribal Lucas Mangope, que ameaçava impedir a votação no bantustão. Poucos dias depois, o CET, empurrado por manifestações dirigidas pelo CNA, assumiu o governo do Ciskei, cujos líderes tribais também se opunham ao pleito. Contudo, essa onda esbarrou na tradição tribal dos zulus, ancorada no KwaZuIu e expressa pelo líder Mangosuthu Buthelezi e seu partido étnico, o IFP (Partido da Liberdade Inkatha).
O bantustão do KwaZuIu acompanha as fronteiras imemoriais do reino zulu destruído pelos colonizadores britânicos em 1879. Diante das sondagens pré-eleitorais que indicavam a preferência de uma maioria zulu pelo CNA de Mandela, o rei do KwaZuIu, Goodwill Zwelithini (sobrinho de Buthelezi) exigiu a autonomia para a província do KwaZulu/Natal e ameaçou deflagrar uma guerra separatista para restaurar o antigo reino tribal. Antes da eleição, a violência étnica envolvendo adeptos do Inkatha e do CNA atravessou o bantustão e atingiu os subúrbios negros e o centro branco de Johannesburgo.
A posição do Inkatha projeta uma sombra ameaçadora sobre o futuro da África do Sul multirracial. Ao rejeitar a noção de uma cidadania comum para todos os sul-africanos, o agrupamento de Buthelezi introduz a idéia de uma confederação étnica baseada em ampla autonomia para as regiões. Essa idéia, crucial para a manutenção das estruturas de poder tribais no KwaZuIu, constitui também uma bandeira dos extremistas africânderes, que sonham criar um território branco autônomo, estruturado sobre as tradições bôeres. Na nova África do Sul, as linhas do conflito político não se reduzem à antiga oposição entre a maioria negra e a minoria b r a n c a .
Agora, negros e brancos comprometidos com a noção da cidadania, confrontam-se com os agrupamentos zulus e africânderes, organizados em tomo da noção de etnia.
APARTHEID ELABOROU UMA GEOGRAFIA DA EXCLUSÃO
A origem remota da África do Sul encontra-se na colonização da região do Cabo, iniciada em 1652 por protestantes holandeses (bôeres). A colônia foi transferida para soberania britânica em 1814, por decisão do Congresso de Viena. A nova administração declarou o fim da escravidão em 1833, no quadro da cruzada anti-escravista movida por Londres. Esse ato desencadeou o Grand Trek: a migração de milhares de bôeres em direção aos altos platôs interiores da África austral. Entre 1834-38, enfrentando as tribos bantos, os trekers fundaram as repúblicas do Orange e do Transvaal.
Os Estados bôeres, apoiados materialmente na escravidão e ideologicamente no Velho Testamento, foram as sementes da árvore do apartheid.
No final do século XIX, a descoberta de jazidas de diamantes e ouro nas repúblicas interiores provocou a guerra entre ingleses e bôeres. A Guerra dos Bôeres (1899-1902) terminou com a rendição do Orange e do Transvaal. Em 1910, uma Constituição negociada entre britânicos e bôeres criou a África do Sul, composta pelos territórios britânicos do Cabo e do Natal e pelas áreas bôer.
Por quase quatro décadas, o poder político permaneceu com os moderados. A mineração e a indústria geraram um vasto mercado de trabalho urbano. A urbanização acendeu o conflito entre africânderes (descendentes dos antigos bôeres) e negros. A defesa fanática da exclusão dos negros e do monopólio dos postos de trabalho pelos brancos forjou o Partido Nacional. Esse grupo, liderado por africânderes radicais e influenciado pelo nazismo, chegaria ao poder nas eleições de 1948.
A muralha do apartheid foi erguida em duas etapas. O “Pequeno Apartheid” (1948-66) baseou-se na Lei do Registro da População, que dividia a população em brancos, mestiços, asiáticos e negros e classificava os negros em nove grupos etno-tribais.
A legislação elaborada em seguida determinava reservas para grupos negros, controlava a sua circulação fora através de passaporte interno, segregava o uso de áreas e serviços (praias, sanitários, ônibus, etc.) e interditava casamentos e relações sexuais entre brancos e negros.
O “Grande Apartheid” (1966-84) baseou-se na Lei de Constituição das Pátrias Banto, que determinava a criação de Estados tribais autônomos nas terras reservadas aos negros. A estratégia africânder previa a concessão da independência aos dez bantustões e a conseqüente desnacionalização da maioria negra. No cerne da idéia dos Estados negros estava a noção de fronteira: os mais de 8 mil km de fronteiras internas delimitando os bantustões funcionariam como muralha entre a tribo africânder e as tribos africanas.
O apartheid foi um experimento de engenharia social e geografia segregadora. Os brancos, apegados ao passado bôer, acreditaram-se donos da história: tentaram congelar o tempo, conservando o passado tribal e as linhas de demarcação étnicas. Esse projeto - a reiteração incessante do Grand Trek – encontra agora o seu ponto final.
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