A professora de Geografia VERA COUTINHO e o jornalista MARCO PIVA visitaram recentemente a África do Sul, durante três semanas, e relatam aqui bastidores da vida num país em que o ódio racial e a morte violenta são rotina.
“Johannesburgo tem o charme típico das metrópoles européias. Ruas limpas, prédios altos e modernos, muitos carros e gente circulando. É uma surpresa para quem visita a África do Sul pela primeira vez. Afinal, onde está o apartheid?
Extinto oficialmente em 1990, o regime de segregação racial durou 43 anos apoiado na violência sistemática contra a maioria negra. Nesse período, os brancos reproduziram o progresso do Primeiro Mundo e jogaram para debaixo do tapete a realidade de 30 milhões de pessoas, que foram morar em lugares que - literalmente - não estão no mapa. São as “townships”.
Fomos passar um fim-de-semana numa delas, perto de Pretória, uma das capitais do país (a outra é a Cidade do Cabo). Em Mamelode moram 450 mil pessoas. Queríamos ver de perto como vivem os negros. No início, a sensação de estranhos no ninho.
Brancos só aparecem por ali vestidos em uniformes de guerra, baionetas nas mãos e carros blindados.
Ficamos hospedados na casa da família de Mike Mailula, um negro sorridente e atencioso. Sua liderança na comunidade (ele é dirigente do Congresso Nacional Africano, o partido de Nelson Mandela) evitou olhares atravessados. Pudemos partilhar do mesmo teto de zinco, do banheiro sem luz e da única torneira que serve para lavar roupa, tomar banho e fazer a higiene matinal.
Ruas de terra, escolas em péssimas condições e superlotadas, transporte precário e saneamento básico quase inexistente compõe da cidade dos negros, bem diferente daquela Johannesburgo da vida agitada.
Na manhã de sábado acompanhamos Mike e sua namorada Milicent a um shopping center de Pretória. Como membro de uma organização não governamental (ONG), Mike tem um salário razoável para os padrões locais e usa o carro da entidade. E lá fomos nós para o primeiro teste das ruas, em pleno domínio branco. Até pouco tempo atrás, o convívio entre brancos e negros era impossível. A união entre pessoas dessas raças era considerada “imoralidade étnica” e penalizada com prisão.
No curto trajeto, a primeira sensação incomoda.
Dos carros, dirigidos em sua maioria por brancos, eram disparados olhares de censura. A multidão que lotava o shopping estava claramente definida: 90% de brancos consumindo e 10% de negros servindo. Os “olhares censores “ passaram a ser feitos na nossa cara, principalmente porque decidimos ser solidários com o casal de amigos, carregando seu carrinho de compras.
Foi uma espécie de linchamento numa linguagem não verbal.
Mais adiante, quando entramos numa loja, presenciamos a outra parte do racismo. Milicent, interessada num par de sapatos, dirigiu-se à vendedora branca. Por uma fração de segundos, uma outra mulher, branca, chegou na frente e perguntou alguma coisa. A vendedora pediu para a namorada de Mike aguardar enquanto atendia a outra mulher. Foi o suficiente para que ela desabafasse: “Vocês viram como a vendedora deu preferência para o branco ?”. Nem adiantava dizer que a coisa não fora bem assim. Depois de quatro décadas de apartheid, os nervos estão à flor da pele e tudo serve de motivo para acusações mútuas.
Na semana seguinte, viajamos para a Cidade do Cabo, no litoral atlântico. Foram 1.400 km de estrada perfeita. Montanhas rochosas e extensas faixas de planície se alternavam nesse caminho de rara beleza. As plantações de uva penteavam os vales e ameaçavam escalar os montes. Como em todo o litoral, a população é mais descontraída e vive num ritmo preguiçoso.
Politicamente, porém, é uma região conservadora por causa dos “coloreds”, os mestiços que ganharam o direito de trabalhar com o branco, transformando-se na classe média local. Eles falam “africaner”, uma espécie de holandês adaptado fonética e gramaticalmente. No passado, somente esse mestiço podia fazer serviços domésticos na casa dos brancos. Não é à toa que a maioria deles vota no Partido Nacional de De Klerk. O final da longa viagem foi comemorado num pub que um mês antes havia sido atacado por um grupo de extrema-esquerda. Na noite do ataque, o local estava cheio.
Os terroristas entraram disparando rajadas de metralhadora e atirando granadas. Os cinco mortos, entre brancos, negros e “coloreds”, mostravam a face cruel e equivocada da luta contra o racismo. Enquanto lembravam esse fato, nossos amigos admitiam sua insegurança diante de uma situação política que caminha no fio da navalha. A transição ainda é uma incógnita. Para a pergunta sobre o que vai acontecer com o país após as eleições, era sempre a mesma resposta: “I don’t know” (eu não sei).”
A ÁFRICA DO SUL É AQUI
SUELI CARNEIRO (*)
A dramática questão do apartheid na África do Sul suscita a comparação entre a situação dos negros no Brasil e naquele país. A consciência nacional sempre se sentiu aliviada diante do conflito racial sul-africano naquilo que em que ele ratifica o decantado mito da democracia racial brasileira.
Afinal, diante dos confrontos de negros e brancos na África do Sul, podíamos nos considerar num paraíso racial. Isso coloca a diferença crucial do racismo brasileiro em relação ao praticado nos Estados Unidos e África do Sul.
No Brasil, desenvolveu-se uma forma muito mais sofisticada, perversa e competente de racismo, através da qual a intolerância racial mascarou-se em igualdade de direitos no plano legal, e concretizou-se na absoluta desigualdade de oportunidades no plano das relações sociais concretas. A ideologia da democracia racial, a miscigenação massiva, a igualdade no plano legal induziu negros e brancos a acreditarem que a situação de inferioridade social dos negros se deve à sua incompetência. Impediu que se tornasse evidente que “os métodos de segregação racial utilizados no Brasil e na África do Sul, embora diferentes entre si, alcançam resultados iguais. Os bantustões sul-africanos aqui são redefinidos nos conglomerados de favelas, alagados e invasões, compostos majoritariamente por população negra:
a lei do passe sul-africano é aqui mascarada na exigência de carteira profissional assinada, violenta e vexatoriamente requisitada pelos policiais brasileiros ao trabalhador negro desempregado e marginalizado” (**)
Dentre as artimanhas do racismo brasileiro a exigência de boa aparência presente nos anúncios de emprego traz como subentendido “negros não se apresentem”. Através do pequeno eufemismo da boa aparência, mantém-se a população negra alijada do mercado formal de trabalho e ao mesmo tempo garante-se os melhores empregos para os brancos. As políticas contolistas oficiosamente implementadas sobre as mulheres de baixa renda, em especial nos Estados do Norte e Nordeste de maioria negra e mestiça, escondem a vocação eugenista dessa sociedade.
(*) A filósofa Sueli Carneiro é presidente do Geledés – Instituto da Mulher Negra
O trecho citado é parte do prefácio ao livro Escrevo o que eu quero, de Steve Biko, Ática, SP
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