quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Ajuda Alimentar e Guerra Tribal Alargam zona da Fome na África

Há vinte anos, as crises devastadoras de fome atingiam os países do Sahel submetidos a períodos prolongados de estiagem. O regime pluviométrico da faixa pré-desértica ao sul do Saara, altamente instável, aparecia como a causa principal da fome: as secas rompiam o frágil equilíbrio entre produção e consumo das sociedades rurais.
A partir da década de 80, a “zona da fome” alargou-se até a África oriental e austral, englobando países como Moçambique, Zâmbia, Angola, o norte do Quênia e o sul do Zaire.
Nos últimos anos, mesmo Botswana –ctradicional fornecedor de grãos – foicsugado pelo vórtice da fome.
A GEOPOLÍTICA DA FOME
A África subsaariana tem 2 milhões de refugiados, banidos das suas regiões e pelas guerras tribais. No Sudão, Moçambique, Angola, Libéria e Serra Leoa, guerras e fome andam lado a lado, eventualmente acompanhadas pela seca.
A multiplicação das guerras tribais –muitas delas travadas com armas modernas, fornecidas a facções rivais pelas superpotências ao tempo da Guerra Fria - revela a decomposição da arquitetura de fronteiras de todo o continente.
Desenhadas pelas potências européias desde o Congresso de Berlim (1985), as fronteiras coloniais sobreviveram à descolonização. Elas reúnem, no interior dos territórios, populações rivais, étnica, cultural e historicamente. As facções em conflito disputam o poder de Estado, a máquina política deixada pelo colonizador. Essas guerras deixam entrever o fundo da tragédia africana: a ausência de Estados Nacionais.
No seu lugar, poderes despóticos que representam tribos ou chefias beneficiam-se das ajudas financeiras internacionais, capturam e utilizam como arma política as ajudas alimentares de emergência, arruínam os campos cultivados e promovem o êxodo em massa.
A ECONOMIA DA FOME
A “ajuda alimentar permanente” fornecida pelos países desenvolvidos cresceu no ritmo da globalização do mercado de alimentos. As milhares de toneladas de cereais e carne enviadas da Comunidade Européia e Estados Unidos para a África subsaariana representam uma arma das mega-empresas agroindustriais na disputa pelo controle dos mercados. Essa ajuda – que reduz os estoques de excedentes empilhados nos armazéns dos países ricos – desorganiza a produção agrícola africana.
No Sahel, vários anos de ajuda internacional estão destruindo o  campesinato. Empresas como a Cargill Inc. – com 14 filiais no mundo, um dos gigantes dos cereais – implantam culturas de frutas e legumes para exportação. A carne de boi da Comunidade Européia, vendida no rastro da ajuda alimentar por metade do preço da carne local, toma o mercado dos pastores semi-nômades  e ameaça exterminar essa atividade praticada há séculos.
A integração perversa da África à economia global está dissolvendo o seu  campesinato. O êxodo rural lança as populações do campo na direção da economia improdutiva das cidades. A economia monetária invade todos os poros da vida social. O continente passa a depender das flutuações de preços do mercado mundial. Entre 1980 e 1991 o índice médio dos preços das matérias-primas exportadas pela África (café, cacau, algodão, ouro, etc.) reduziu-se em 30%. A dívida total da África subsaariana foi multiplicada por 3,3. A mancha da fome não parou ainda de crescer. Ao contrário, ameaça engolir quase todo o continente africano.
Aqui, nossas vacas dão meio litro de leite por dia. Lá, cada cabeça produz cotidianamente quarenta litros. Eles guardam uma dezena e lançam o restante junto com os dejetos de adubagem para limitar a produção.
(Michel Daou, camponês do Mali, ao voltar de estágio de cooperação na França, Lê Monde Diplomatique, setembro 1992, pág. 27)
Após trinta anos de existência, a ajuda alimentar do Norte não melhorou em nada as coisas na África. Ao contrário, nosso continente regrediu mais ainda. Não se pode dar de comer a um povo por toda a vida. É preciso também estimular o seu desenvolvimento econômico.
(Ousmane Sembene, senegalês, pioneiro do cinema africano, Lê Monde Diplomatique, maio 1993, pág. 20
SUBNUTRIÇÃO MATA 10 MILHÕES DE CRIANÇAS POR ANO NO MUNDO
MELHEM ADAS (*)
Dez milhões de crianças de menos de cinco anos morrem de fome anualmente.
Esse ritmo de mortalidade é dez vezes superior ao do genocídio de judeus durante a Segunda Guerra, observa o economista Ladislau Dowbor. A fome não decorre de condições naturais adversas, ou do crescimento populacional dos países subdesenvolvidos e da falta de alimentos no mundo – explicações amplamente utilizadas para mascarar a realidade. A fome, não é somente um problema biológico. É, fundamentalmente, político, econômico e social. É a expressão biológica de uma grave doença social.
A ordem (ou desordem) mundial, as estruturas sociais ultrapassadas que permanecem vivas e resistentes à mudança na maior parte dos países, o modelo de desenvolvimento econômico, a baixa renda da população, a dívida externa e a injusta estrutura fundiária são algumas das causas da fome. Cerca de um bilhão de pessoas vão dormir todas as noites sem ter consumido os alimentos de que necessitam para manter a saúde. Apesar do extraordinário avanço científico e tecnológico, as condições de vida da maioria da população dos países subdesenvolvidos se deterioraram nos últimos anos.
Milhões vivem em pobreza absoluta – no Brasil, cerca de 20% da população – pois sua renda é tão baixa que não podem ter alimentação mínima diária satisfatória. A expectativa de vida em muitos países é baixa, cerca de 42 anos, constituindo uma séria violação do direito que todo ser humano tem de viver o maior tempo de vida.
A produção internacional de grãos já bastaria para assegurar à população mundial as 3.000 calorias e os 65 gramas de proteínas necessários diariamente.
Mas, pelo menos 40% da produção mundial de cereais destina-se à alimentação animal, principalmente do gado nos países desenvolvidos.
Empresas transnacionais que operam nos países subdesenvolvidos canalizam recursos para a produção de ração para gatos e cães, principalmente dos países ricos. Apenas nos EUA, o volume dos negócios com ração animal supera os US$ 2 bilhões anuais. Susan Geoge, em seu O Mercado da Fome, assinala que “qualquer vira-lata rico ou gato mimado é melhor cliente para a agroindústria do que um ser humano pobre”.
As distorções e contradições sociais, políticas e econômicas mundiais são muito grandes. No Brasil, a situação chegou a tal ponto que, neste ano, foi lançada a campanha contra a fome, liderada pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho. A campanha visa a atender apenas uma situação de emergência, ao passo que as reformas necessárias para reverter o quadro social ainda estão por vir. Daí a necessidade de todos participarmos do questionamento da atual estrutura sócio-econômica e política. Tal discussão não depende de quem somos social ou profissionalmente, pois, como disse Terêncio: “Sou humano, e nada do que seja humano considero estranho a mim”.
(*) Melhem Adas é professor de Geografia e
autor de vários livros didáticos e paradidáticos, entre os quais A fome, crise ou escândalo (Moderna, 1ª edição, SP, 1993)
TENSÕES ÉTNICAS E LUTAS ENTRE TRIBOS MERGULHAM A ÁFRICA NEGRA EM SANGUE, DESTRUIÇÃO E MORTE
Apenas em agosto de 1993, a guerra civil em Angola matou mais do que todo o conflito na Bósnia. A luta entre negros na República Sul-Africana (RSA) mata um número crescente de pessoas. A Nigéria está à beira da guerra civil. Fazemos, em seguida, uma descrição sumárias dos terríveis  conflitos na África subsaariana.
NIGÉRIA
Há pelo menos 100 grupos étnicos no país (o mais populoso da África negra), dos quais os principais são os haussas e fulanis (ao norte), os iorubas (sudoeste) e os ibos (sudeste). Além das divisões étnicas, há diferenças religiosas importantes entre o norte (islâmico) e o sul (cristão). O desenvolvimento diferenciado dos grupos étnicos e a descoberta de petróleo no sudeste levaram a uma tentativa de separatismo da região. A guerra que se seguiu durou de 1967 a 1971, vitimou centenas de milhares de pessoas e ficou conhecida como Guerra de Biafra. Os ibos foram derrotados. A Nigéria manteve a integridade territorial, mas assistiu a uma sucessão de golpes e ditaduras. Os governos, quase sempre comandados por militares nortistas, esmagaram a oposição. Em junho de 93, foram realizadas eleições que deram vitória a Mashood Abiola, empresário do sudoeste. O general Babangida, no poder desde 1985, anulou as eleições, gerando protestos em todo país. O Ocidente impôs sanções econômicas. Os dois meses que se seguiram foram de grande tensão. No final de agosto, Babangida renunciou, e passou o poder a um governo provisório, ao que parece comandado por ele mesmo. A crise aumentou as tensões étnicas, e impeliu milhares de pessoas de volta às suas regiões étnicas de origem. Fatos semelhantes aos que antecederam a Guerra de Biafra.
ANGOLA
As raízes do conflito em Angola – de longe, os mais sangrentos de 1993 – são muito antigas: datam da época em que o país era colônia portuguesa. Naquele período, vários grupos lutavam pela independência, ao mesmo tempo em que disputavam entre si quem tomaria o poder após a eventual derrota de Portugal. Dois grupos se destacaram: o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) e a União Nacional Para a Independência Total de Angola (Unita).
O MPLA era de orientação marxista, propunha-se como supra-tribal e tinha maior influência no centro-oeste do país, especialmente nas cidades maiores como Luanda (a capital). A Unita era pró-Washington, tinha maior influência no centro-sul, onde é majoritária a etnia ovimbundo. Quando os portugueses deixaram formalmente o país, em 1975, o MPLA detinha o controle da maior parte do território e da capital, sendo por isso reconhecido internacionalmente como o novo governo de Angola.
A vitória do MPLA só foi possível com a ajuda material da antiga União Soviética e apoio de milhares de soldados cubanos. Contudo, a Unita conseguiu manter sobre seu controle áreas significativas do sul, onde era apoiada pelos EUA e por soldados sul-africanos.
Com o arrefecimento das tensões mundiais no final dos anos 80, a situação angolana aparentemente se encaminhou para um desfecho político e não militar. Por pressão das superpotências, os protagonistas do conflito chegaram a um acordo. Por conta desse acordo e das novas condições internacionais no início dos anos 90, as tropas estrangeiras foram retiradas da região, o MPLA renunciou ao marxismo e programou eleições pluripartidárias que se realizaram no segundo semestre de 1992. As eleições, que contaram com a participação da Unita, deram vitória ao MPLA, com estreita margem de votos. Apesar de observadores internacionais terem confirmado a lisura das eleições, a Unita não acatou os resultados e reiniciou o conflito que perdura até os dias atuais.
ÁFRICA DO SUL
O número crescente de vítimas nos últimos dois anos na RSA tem como causa principal a luta entre grupos negros. Os negros constituem 71% da população. Segundo critérios etno lingüísticos (idealizados pelos brancos) existem nove “nações negras”.
Os dois maiores grupos são também os grandes rivais: zulus e xhosas. Eles disputam o poder na RSA pós-apartheid.
Os xhosas de Nelson Mandela, agrupados no Congresso Nacional Africano (CNA), pretendem um país multirracial, onde eles sejam predominantes politicamente. Os zulus, no Partido Inkhata, não aceitam um eventual predomínio xhosa. Querem um governo mais descentralizado, onde teriam grande autonomia. Os conflitos, cada vez mais violentos, ocorrem quase sempre nas townships (subúrbios negros de cidades “brancas”), e são estimulados pelos brancos radicais contrários às reformas raciais do presidente Frederick De Klerk. Eles acreditam que as lutas entre os negros beneficiam os brancos.
 Serviço
Sobre a Fome:
• A Fome, crise ou escândalo, Melhem Adas, Moderna, SP, 1993
• Raízes da Fome, Ladislau Dawbor, Vozes, Petrópolis, 1985
Sobre a África:
• África do Sul, Demétrio Magnoli, Contexto, SP, 1992
• A história de Biafra, Frederick Forsyth, Record, RJ, 1977.
Filmes em vídeo:
• Cães de Guerra, John Irving, Inglaterra, 1980.
• Selvagens cães de guerra, Andrew  McLaglen, Inglaterra, 1978.
• Um grito de liberdade, Richard Attenborough, Inglaterra, 1987.

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