segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Futebol e Patriotismo- A religião leiga da era Industrial

O historiador da cultura Nicolau Sevcenko explica o fascínio e poder de mobilização que o futebol exerce sobre as grandes massas dos centros urbanos industriais, de Londres a São Paulo, do fim do século 19 até hoje.
U m dos aspectos mais prodigiosos da história do futebol, desde suas origens, tem sido a rapidez extraordinária da expansão de sua popularidade, especialmente no contexto das cidades industriais.
O fenômeno, além de interessante é bastante revelador, tanto das características mais atrativas desse esporte quanto do ambiente peculiar criado pelo crescimento acelerado das cidades em processo de industrialização. O fato já é notável desde o momento da organização mais efetiva do futebol como esporte profissional, vinculado a uma entidade coordenadora, a Liga, e programado segundo uma tabela de jogos que ao longo de uma temporada de disputas definiria um campeão final.
Isso ocorreu na Inglaterra durante a década de 1880.
Cada cidade industrial inglesa se veria divida nesse período em duas comunidades rivais, arrastadas à mais apaixonada loucura quando os times que as representavam se viam frente a frente nos limites dos gramados e dos 90 minutos. Era uma comoção, um cataclisma de nervos e corações arrebentados, não raro com cabeças quebradas e olhos arroxeados. Era assim quando se enfrentavam, por exemplo, o Manchester United e o Manchester City, ou, em Londres, os arquirrivais Arsenal, Chelsea e Crystal Palace.
Essas inconciliáveis divisões ocorriam por diferentes motivos, ora opondo católicos a protestantes, irlandeses ou gauleses a anglo saxões, trabalhadores especializados a não especializados, residentes antigos da cidade a imigrantes e o que mais se imaginar, muitas vezes várias dessas razões ao mesmo tempo. Mas o fato notável era como a massa se via envolvida e empenhada nas batalhas simbólicas dos campos de futebol. Isso levou o mais célebre historiador da classe trabalhadora inglesa, Eric Hobsbawm, a definir o futebol como “a religião leiga da classe operária”.
Assim, num curtíssimo intervalo de tempo, o futebol conquistou a população trabalhadora inglesa e, em breve, o mundo inteiro. Como entender esse frenesi, esse poder irresistível de sedução, essa difusão epidêmica inelutável? Parte da explicação esta na cidade, parte no próprio futebol. Nas cidades, porque no terço final do século 19, o mundo foi rapidamente transformado pela Revolução Científico-Tecnológica. Com ela, seriam introduzidos a eletricidade, os derivados do petróleo, os motores de explosão, os altos-fornos,  as indústrias químicas, fazendo surgir os primeiros complexos industriais, multiplicando a massa trabalhadora e dando origem as grandes  metrópoles.
Embora centralizado na Europa, Estados Unidos e Japão, esse processo unificou um mercado mundial. Populações eram deslocadas rumos aos novos centros de produção, fazendo brotar cidades imensas da noite para o dia. Nessas cidades, ninguém tinha raízes ou tradições, todos vinham de diferentes partes do país e do mundo.
Na busca de novos traços de identidade e solidariedade, de novas bases emocionais e de coesão que substituíssem as comunidades que cada um deixou, essas pessoas se vêem dragadas para paixão futebolística que irmana estranhos, os faz comungarem sonhos, consolida gigantescas famílias vestindo as mesmas cores.
O futebol se presta maravilhosamente a  consolidar laços de identidade. Em primeiro lugar por ser um esporte de equipe, implicando um grande número (11) de funções, exigindo talentos e reflexos específicos, mas que só funcionam bem se  casarem e harmonizarem num conjunto coordenado, como dança cronometricamente desempenhada. Outros esportes – corrida, natação, atletismo, luta, levantamento de peso – se  concentram em desempenhos especializados e levados aos limites do corpo. Neste sentido o futebol se parece mais com o basquete, o basebol ou o futebol americano. Mas estes são praticados sobretudo com as mãos, que na nossa espécie são os membros mais versáteis, o que os torna extremamente rápidos e decididos em reflexos instantâneos. No futebol, a imprecisão e a maior lentidão do uso dos pés ampliam os papéis do acaso, do senso de oportunidade, dos deslocamentos e do conjunto. Essa maior imponderabilidade faz com que aumente também o significado das torcidas.
Quem curte futebol sabe: torcida é crucial. São duas situações diferentes mas indissociáveis. Jogar exige imenso desempenho físico e grande controle nervoso. Torcer implica tremenda descarga nervosa, com grande controle físico. No campo, o jogador se alimenta dessa descarga para aumentar sua eficácia. O torcedor frui o desempenho físico do jogador para levar ao clímax sua descarga: gooooooooooooool!!!
O caso do Brasil é exemplar. Trazido pelos trabalhadores e funcionários ingleses, o futebol se difundiu por dois caminhos. Um foi o dos trabalhadores das estradas de ferro que deram origem aos times das várzeas, o outro foi através dos clubs ingleses que introduziram o esporte nos grupos de elite. Tal como Londres, São Paulo ficou até o final dos anos 1920 dividida entre três agremiações arquiinimigas – Paulistano, Palestra e Corinthians. Cada final de campeonato era como uma guerra civil. Mas o auge eram as disputas entre as seleções do Rio e São Paulo. Fosse vitória aqui ou lá, era para fechar o comércio, era feriado, festa, carnaval. Nada disso, contudo, se comparava com o furor que se apossou das duas cidades quando, em 1920, o Brasil se tornou campeão sul americano.
Foi preciso colocar os vencedores em carro de bombeiro, controlar a multidão com cordas, cães e cacetete e deixar a festa rolar por uma semana inteira.
No começo isso preocupava as autoridades. Mas em breve, a partir de Washington Luís, que se dizia “governador-desportista”, os políticos foram aprendendo a estimular e tirar proveito desses momentos de catarse, procurando converte-los em legitimação emocional de seus projetos. As vitórias nas Copas do Mundo consagraram esse processo. Identidade nacional, futebol, carnaval e união de todos viraram sinônimos. Se com o futebol as pessoas tentavam compensar a riqueza dos laços afetivos de que se viram privados pelo advento das grandes cidades, com a globalização dos meios de comunicação e as políticas de massas o futebol se tornou um meio pelo qual se procura cativar emocionalmente populações discriminadas. No terceiro mundo, o futebol é o mais poderoso esteio emotivo de coletividades sacrificadas pela privação de direitos e prazeres que dão gosto à vida. Cabe pois a essa parte do mundo aprender a rimar futebol com promoção social. Ponto final.
Nicolau Sevcenko é do grupo de estudos de história da Cultura do Instituto de Estudos Avançados da USP, e do Instituto de Estudos de Cultura Latino-Americana do King‘s College da Un. de Londres. Seu último livro é Orfeu Extático na Metrópole – São Paulo sociedade e cultura nos frementes anos 20, Cia das Letras, Sp, 1992.

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