Drama e tensão marcaram a assinatura do acordo final de autonomia para a Faixa de Gaza e Jericó (Cisjordânia ocupada), no Cairo, a 4 de maio. Diante das câmeras de televisão do mundo todo, o líder da OLP (Organização para Libertação da Palestina), Yasser Arafat, rompeu o protocolo e recusou-se a assinar os mapas de Jericó que acompanhavam os documentos do histórico compromisso. A mediação dos padrinhos do evento – o presidente egípcio Hosni Mubarak, o secretário de Estado americano Warren Cristopher e o chanceler russo Andrei Kozyrev – rompeu o impasse. Após muitos minutos de suspense, o premiê Yitzhak Rabin, de Israel, concordou em assinar um adendo que garante a continuidade da discussão sobre as dimensões da área autônoma de Jericó, fixadas a princípio em apenas 62 quilômetros quadrados. O desfecho constitui a senha tão aguardada para o início da retirada das tropas israelenses, que deixam os territórios autônomos quase três décadas depois da Guerra dos Seis Dias (1967).
O drama do Cairo esconde os verdadeiros obstáculos que descortinam na segunda etapa do percurso da paz entre israelenses e palestinos. A entidade autônoma palestina nasce no interior de territórios que foram submetidos à colonização israelense. A Cisjordânia – que deverá ser proximamente integrada à área autônoma palestina – abriga cerca de 100 mil colonos israelenses em 139 colônias. A Faixa de Gaza – uma tripa de terra devastada com 46 Km de extensão por 6 a 10 Km de largura e densidade de 2350 habitantes por quilômetro quadrado – abriga cerca de 3,3 mil colonos em 16 colônias. As colônias não estarão submetidas à Autoridade palestina e seu futuro deverá ser regulamentado nas negociações durante o período transitório de autonomia, previsto para durar no máximo cinco anos.
A colonização dos territórios palestinos processou-se em duas etapas. Entre 1967 e 1977, sob o governo trabalhista, implantaram-se as chamadas colônias estratégicas. A idéia, contida no Plano Allon (do vice-presidente do gabinete no governo de Golda Meir), era estabelecer duas faixas de povoamento israelense na Cisjordânia, a externa seguindo o vale do Rio Jordão e a interna acompanhando a fronteira de Israel e o território ocupado. As justificativas de segurança foram abandonadas pelos governos conservadores do Likud que, desde 1977, promoveram a colonização extensiva da Cisjordânia e introduziram a noção da colonização israelense também na Faixa de Gaza. Os dirigentes do Likud afirmavam sem tergiversação o objetivo de incorporar em definitivo os territórios, formando o Grande Israel bíblico.
As colônias materializam a maior armadilha para a paz. Os colonos – muito dos quais fanáticos religiosos ligados aos grupos fundamentalistas judeus – não aceitarão viver no futuro sob leis e autoridade palestina, pois deslocaram-se movidos pelos sentimentos de reconquista da terra bíblica de Israel. A presença da Autoridade palestina autônoma já parece a muitos deles uma tradição do governo de Rabin. O doutor Goldstein – o assassino que alvejou dezenas de fiéis na Mesquita de Hebron a 25 de fevereiro – representa para eles um mártir da causa judaica. O próprio governo trabalhista, cuja sorte está ligada ao sucesso do processo de paz, reitera garantias de segurança e permanência para os colonos.
As colônias representam o argumento para a oposição palestina radical. O Hamas, movimento islâmico fundamentalista, promete prosseguir a Intifada (revolta palestina contra as tropas de ocupação), qualificando os acordos entre a OLP e Israel como atos de traição contra a causa nacional.
Mesmo um intelectual palestino-americano influente e respeitado como o professor Edward Said condenou os termos da paz, temendo que o adiamento da discussão sobre as colônias acabe por transformar os territórios autônomos em algo como protetorados informais de Estado de Israel.
A retirada israelense significa uma inflexão histórica, uma inversão do movimento expansionista de Israel. Mas o Estado palestino antecipado na constituição das áreas autônomas de Jericó e da Faixa de Gaza é ainda uma miragem no deserto. O estatuto futuro de Jerusalém, símbolo nacional palestino e capital do Estado visado pela OLP, sequer foi debatido. A cidade sagrada de mulçumanos, judeus e cristãos abriga atualmente uma maioria populacional judaica, gerada pelo deslocamento de 155 mil colonos israelenses para a parte oriental. Jerusalém e as colônias sintetizam a mesma questão, que é crucial para uma paz duradoura: estará Israel disposta a conviver com um Estado Nacional Palestino?
Devemos entender a luta entre palestinos e sionistas como uma luta entre uma presença e uma interpretação, aquela sendo permanentemente derrotada e erradicada por esta.
No que consistia a sua interpretação? Não importa quão atrasados, incivilizados e silenciosos eles eram, os árabes palestinos viviam na sua terra. Leia qualquer relato de viagem pelo Oriente Médio escrito nos séculos 18 ou 19 – Chateaubriand, Mark Twain, Lamartine, Nerval, Disrael – e você encontrará referências sobre os árabes que habitavam a Palestina (...) Ainda assim, quase sempre, porque a terra era a Palestina e, portanto, controlada, na imaginação ocidental, não pela sua realidade contemporânea e pelos seus habitantes reais mas pelo seu passado portentoso e cheio de glória, e por um futuro talvez tão glorioso quanto o passado, a Palestina era vista como um lugar a ser de novo ocupado e reconstruído.
( Edward W. Said, The Question of Palestine, Random House, New York, 1979, pág. 9
“Ai de ti, Jerusalém”
Nenhuma questão é tão espinhosa na geopolítica do Oriente Médio quanto a do status de Jerusalém. Reivindicada como sua capital por israelenses e palestinos; declarada cidade internacional pelas Nações Unidas (em 1948); sede das três mais importantes religiões monoteístas (Judaísmo, Catolicismo e Islamismo); local bíblico de passagem de profetas e vilões, pecadores e santos, messias e déspotas; território disputado por impérios, por cruzados e mercadores. Jerusalém, mais do que qualquer outra cidade no mundo, é um símbolo – que transcende em muito, nessa qualidade, a sua eventual importância estratégico-militar.
Quando se discute a posse de Jerusalém, o que se coloca em jogo é a posse de uma chave quase mágica, que conferirá ao seu eventual senhor a legitimidade de pelo menos três mil anos de história.
“O ano que vem em Jerusalém” – na senha da Diáspora judaica, Jerusalém tornou-se o lugar mitológico de um povo milenarmente destituído de seu lugar geopolítico. Um mito de tamanho poder, uma virtualidade sustentada por uma força tão material que pôde fundamentar, culturalmente, uma coesão que desafiou o tempo, a hostilidade dos impérios e – suprema ignomínia – o holocausto de Adolf Hitler.
“Sanaúd” (Voltaremos) – na senha palestina, nessa Diáspora contemporânea, a saudação tem o duplo valor de uma advertência e de uma aspiração. Jerusalém não é, agora, um local apenas preservado pela memória. Não. Ali estão, ainda, as casas das quais palestinos ainda vivos foram expulsos pelos ocupantes judeus, as ruas e as construções que ainda ecoam suas vozes, mesquitas em que jamais foram interrompidas suas orações. Voltar a Jerusalém é sanar uma injustiça, costurar o que foi rompido, lavar com água fresca a amargura da des-possessão.
Mas tampouco Jerusalém é o condomínio de judeus e palestinos. É um patrimônio da humanidade naquilo que ela tem de mais perene, a identificação religiosa materializada em símbolos e locais “sagrados”. Ali estão o Muro das Lamentações, as sinagogas ancestrais, os túmulos de Davi e Absalom, a Basílica do Santo Sepulcro, o Santuário da Ascensão de Cristo, o caminho do Calvário, as mesquitas mulçumanas, a tumba de Lázaro. É dessa identificação – a mesma que, nos limites tantas vezes construídos pela História, gera a intolerância cultural, o ódio étnico e exclusivista – que a “Cidade Santa” extrai sua força, seu magnetismo, seu enigma. Nesse sentido, Jerusalém também é o grande testemunho de que os homens hoje não são tão radicalmente distintos daqueles que vagavam pelos desertos do Oriente Médio antes de Cristo.
Subsiste o dilema. A que Estado pertence Jerusalém? Não haverá qualquer acordo realista entre judeus e palestinos sem a resolução desta questão. Na pior das hipóteses, não haverá mesmo acordo nenhum. Mais uma vez, o fantasma evocado pela profecia bíblica – “Ai de ti, Jerusalém, não restará pedra sobre pedra” – pesa sobre o destino dos que tentam viver.
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