Sua condução ao cargo, sob protesto até mesmo de setores da bancada republicana, lançou novas sombras ao processo de organização da 60ª Assembléia Geral das Nações Unidas, com realização marcada entre os dias 14 e 16 de setembro. A ONU se mostra paralisada e impotente em face de um mundo cada vez mais polarizado por forças que ela não controla.
A mera formulação da pauta, anunciada em março pelo secretário-geral Kofi Annan, é suficiente para sugerir as dimensões dos impasses que paralisam a entidade: reorganização da ONU (isto é, principalmente, a reforma do seu Conselho de Segurança), guerra ao terror, direitos humanos, combate à miséria planetária. O pano de fundo do grande tabuleiro de xadrez é a ofensiva neoconservadora da Casa Branca, que atribui a si própria o papel de “xerife do mundo”, acima e além das instâncias internacionais de decisão, como, aliás, demonstra a nomeação de Bolton.
Desmoralizada pelas ações unilaterais da hiper potência (em particular, a invasão do Iraque, em março de 2003), desafiada pela ação deletéria de grupos terroristas, usada como instrumento de barganha por blocos e potências “emergentes” (caso da China) que disputam fatias do poder mundial, a ONU é obrigada a se indagar sobre o seu futuro.
Esse quadro geral é revelado de forma muito precisa por um relatório da Anistia Internacional (AI) segundo o qual os Estados Unidos mantêm cerca de 70 mil pessoas detidas em bases e prisões secretas fora do território americano. A escandalosa situação da base militar americana de Guantánamo, em Cuba, onde são mantidos cerca de quinhentos prisioneiros capturados durante as guerras no Afeganistão e no Iraque, sem direito a julgamento, é apenas a “ponta do iceberg”, afirma a AI, corroborando a denúncia de porta-vozes da ONU, segundo as quais a Casa Branca impede a visita de seus relatores especiais às bases usadas como prisão. Manfred Nowak, relator da ONU contra a tortura, afirma que o fato de Washington negar informações leva os especialistas a concluir que o governo Bush “tem algo a esconder do público”. Os relatores fizeram inúmeras solicitações, em vão, para visitar acusados de terrorismo detidos não só em Guantánamo, como em prisões americanas no Iraque e Afeganistão.
Mas há limites que mesmo a Casa Branca não pode ultrapassar. O seu total isolamento diplomático mundial cobra um elevado preço político, hoje demonstrado pelo buraco sem fundo em que Bush se meteu no Iraque. Ele não pode, simplesmente, retirar suas tropas, sob pena de ver o país cair nas mãos de forças fundamentalistas hostis. Tampouco pode permanecer indefinidamente no Iraque, pois as constantes baixas de seus soldados causam a reprovação da opinião pública mundial, e da americana, em particular; e não conta com a cumplicidade das potências que ignorou ao decidir a invasão. Bush é obrigado a fazer o jogo diplomático na ONU, mas quer fazê-lo segundo os seus próprios termos. É isso que estará em questão na 60ª Assembléia Geral.
Assim, como parte do jogo diplomático, a Casa Branca é obrigada a aceitar a tese de que o Conselho de Segurança da ONU deve ser ampliado, para contemplar as mudanças que ocorreram no mundo após o fim da Guerra Fria e com o advento da globalização. Mas veta a proposta do G-4 (grupo formado por Brasil, Alemanha, Índia e Japão), de admitir seis novos membros permanentes no conselho (os próprios quatro e outros dois da África), além de outros quatro membros rotativos. Washington propõe, no lugar disso, a inclusão apenas do Japão e da Índia, pretendendo sedimentar um “cordão sanitário” estratégico em torno da China, considerada pelos neoconservadores de Bush como a grande rival ao longo do século XXI.
A China, com poder de veto sobre as decisões da Assembléia Geral, que devem ser assumidas por maioria absoluta (ou seja, dois terços dos países-membros), também anunciou a rejeição à proposta do G-4 e certamente não assistirá pacificamente à manobra americana cuja destinação final é a sua derrota. Do ponto de vista da União Européia, a eventual inclusão da Alemanha ganhou importância, após a derrota do projeto de tratado constitucional europeu que consolidaria, no velho continente, uma organização capaz de competir militar e tecnologicamente com os Estados Unidos . Por essa razão, a pretensão alemã cria uma nova linha de clivagem nos debates.
Em meio a tantas incertezas, uma das poucas afirmações seguras é a de que foi derrotada a estratégia arquitetada pelo governo Lula para incluir o Brasil no Conselho de Segurança. A pá de cal – após o veto antecipadamente formulado por Washington e Pequim – foi a rejeição dos países africanos à proposta do G-4. A União Africana pede seis cadeiras permanentes e mais cinco rotativas, mas principalmente insiste no direito de veto imediato para os novos membros permanentes, do qual abriu mão o G-4. Saíram pelo ralo todas as demonstrações de “boa vontade” do governo Lula para com a Casa Branca, especialmente a desastrada missão de paz no Haiti, assim como as mesuras à China, incluindo degenerados elogios ao comportamento chinês em relação aos direitos humanos.
A impotência da diplomacia curva-se à violência das armas. Atravessada por tantos impasses, a ONU dificilmente sai fortalecida de sua 60ª Assembléia Geral.
Mas o terrorismo, como contrapartida, vai muito bem – tanto o terrorismo arquitetado por grupos fundamentalistas, como o que praticou o recente atentado em Londres, quanto o praticado por Estados que bombardeiam populações civis e empregam métodos de tortura e assassinatos em suas prisões, como é o caso dos Estados Unidos. Cria-se, portanto, um terrível círculo vicioso, cujas grandes vítimas são as populações do mundo, que, há seis décadas, saudaram a criação da ONU como um passo gigantesco rumo a uma sociedade mundial mais equilibrada e socialmente justa.
Boletim Mundo n° 5 Ano 13
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