quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

O ENIGMA IRANIANO

Cláudio Camargo

Nas cercanias da Universidade de Teerã,um grupo de estudantes faz uma manifestação com cartazes em apoio a Mustafá Mori, ex-ministro da Educação tido como “reformista” – dentro dos limites do que pode ser entendido como tal numa teocracia como o Irã dos aiatolás. Mori foi um dos sete candidatos que disputaram a sucessão do presidente, também “reformista”, Mohammad Khatami no primeiro turno das eleições de junho. De repente, policiais vindos de todos os lados atacam os manifestantes a golpes de cassetetes. Mas eles não se intimidam e continuam gritando palavras de ordem. Há um clima de inconformismo e de revolta no ar.
Fora do circuito universitário, as congestionadas ruas da capital iraniana vivem uma disputa eleitoral acirrada, como nunca se viu antes. Carreatas, comícios e até pessoas dançando nas ruas, em aberto desafio à rígida moral islâmica. Tudo se passa como se o Irã fosse uma democracia, não uma autocracia governada de fato pelo aiatolá Ali Khamenei – líder espiritual, comandante-em-chefe das Forças Armadas e virtual chefe do Judiciário –, e pelo famigerado Conselho dos Guardiães, órgão ultraconservador com poder de vetar leis aprovadas pelo Majlis (Parlamento), atos do governo e candidatos.
“Não podemos permitir que os setores conservadores façam o país retroceder aos tempos do aiatolá Khomeini”, diz Ali, que preferiu omitir o sobrenome, referindo-se à oposição à liberalização promovida nos dois mandatos do presidente Khatami, a partir de 1997. Embora tímido, esse processo é em parte responsável pelo fato de os iranianos hoje poderem discutir – ainda que vigiados de perto pela polícia – as plataformas de seus candidatos.
O primeiro turno das eleições presidenciais do Irã, em 17 de junho, mostrou que o país vive uma situação completamente inusitada para um regime fundamentalista: não se pode imaginar nada semelhante em outra teocracia islâmica, como, por exemplo, a Arábia Saudita. Para um observador brasileiro, é uma situação que parece evocar os últimos anos da ditadura militar tupiniquim.
No entanto, desafiando todas as previsões, os iranianos escolheram como novo presidente o mais conservador entre os conservadores, o desconhecido Mahmoud Ahmadinejad, 49 anos. Ex-prefeito de Teerã, ele governou a cidade com propostas populistas numa mão e o Corão na outra, restabelecendo as draconianas regras islâmicas de costumes, como a separação por sexo em elevadores. Eleito no segundo turno, com 62% dos votos, derrotou o candidato favorito, o ex-presidente Ali Akbar Hashemi Rafsansani, 70 anos, tido como representante do establishment iraniano, que ficou com apenas 36%.
Ahmedinejad prometeu redistribuir as riquezas advindas da venda do petróleo, num momento em que os preços disparam no mercado internacional e o Irã é o quarto maior produtor do mundo. O apelo populista tocou principalmente os corações das empobrecidas massas iranianas, muito religiosas e conservadoras e cada vez mais irritadas com a corrupção do clero xiita que dirige o país desde a Revolução Islâmica de 1979. Esse setor identifica a tímida liberalização de costumes – como o fim da obrigatoriedade do uso do xador – à corrupção e às suas desgraças. “Eles (os reformistas) estão agredindo a lei islâmica apenas para agradar aos ocidentais”, acusa uma eleitora de Ahmedinejad adequadamente vestida de preto, da cabeça aos pés, que votou numa mesquita na periferia de Teerã. “Eles enriqueceram e se esqueceram dos pobres”, dispara a mulher.
“Os aiatolás têm medo de serem hostilizados pelo povo”, informa o estudante Mehdi, 22 anos. De fato, quando se caminha pelas ruas de Teerã, dificilmente se vê algum clérigo.
Assim posto, poderia parecer que a eleição de Ahmedinejad foi a expressão profunda desse movimento de inconformismo contra o regime, consagrando a vitória de um outsider contra o candidato do andar de cima, o ex-presidente Hashemi. Nada mais ilusório.
Na verdade, o ex-militar Ahmedinejad – acusado de ter participado do seqüestro dos diplomatas americanos na embaixada dos Estados Unidos em Teerã, em 1979 –foi o candidato do homem-forte do Irã, o aiatolá Ali Khamenei, irritado com o clima “licencioso” criado pelo governo do presidente Khatami. Se o ex-prefeito cativou as massas desvalidas com um discurso aparentemente anti-establishment, mas na verdade anti-reformista, Khamenei empenhou aparelhos de Estado, como as madrassas (escolas religosas) para eleger seu pupilo.
A surpreendente vitória de Ahmedinejad também deve ser atribuída à frustração da classe média com a incapacidade de Khatami de enfrentar a linha-dura e promover reformas efetivas, o que provocou um elevado grau de abstenção eleitoral.
“Ele nos traiu”, assegura um jovem engenheiro antes de votar. Ao que parece, a juventude iraniana quer mais do que poder usar roupas ocidentais, exibir pôsteres de ídolos pop como Nirvana ou Britney Spears ou ler, em tradução farsi, as autobiografias de Bill e Hillary Clinton.
“Para o regime, trata-se agora de recompor a elite dominante e garantir, em certa medida, algum bem-estar da população, evitando-se, com isso, o surgimento de novos movimentos de oposição”, acredita o analista Luciano Zaccara, da Universidade de Madri. “Também é provável o aumento das restrições aos costumes”, diz.
Paradoxalmente, o clima internacional mais radicalizado em relação ao Irã – provocado tanto pela eleição de Ahmadinejad quanto pela recente retomada do programa nuclear iraniano, supostamente para “fins pacíficos” – poderá ser útil à essa empreitada.
Os falcões da Casa Branca já se sentem à vontade para dizer à Europa que não há muito o que conversar com Teerã, abrindo o caminho para sanções econômicas da ONU, num primeiro momento.
É o caldo de cultura ideal para que a esclerosada teocracia iraniana tente recriar as condições de uma  nova jihad (guerra santa) contra o “Grande Satã”. Resta saber até que ponto os iranianos, principalmente os jovens – que formam 70% da população – exaustos de privações e provando, por pouco que seja, o gostinho da liberdade, acompanharão os aiatolás nesse novo embate.

Boletim Mundo n° 5 Ano 13

Nenhum comentário:

Postar um comentário