Manmohan Sing primeiro-ministro da Índia, fez uma visita histórica a Washington, em julho. George Bush concedeu-lhe o privilégio, reservado a raros chefes de Estado ou governo estrangeiros, de um discurso no Congresso.
Mais palpável do que isso, reconheceu na prática a Índia como integrante do seleto clube de potências nucleares “oficiais”. As sanções impostas ao país após os testes nucleares de 1998 foram levantadas e, agora, os Estados Unidos podem transferir tecnologia nuclear de uso civil. A Índia comprometeu-se a separar o seu programa nuclear bélico do seu programa energético e a submeter-se a uma moratória de testes nucleares por tempo indefinido.O clube nuclear “oficial” passa a contar com seis membros: os cinco integrantes do Conselho de Segurança (CS) da ONU e a própria Índia. O Paquistão, que também realizou testes nucleares em 1998, segue na condição de potência nuclear “ilegal”, enquanto Israel e a Coréia do Norte, que jamais realizaram testes, são potências nucleares “clandestinas”, uma condição à qual pode ascender, em alguns anos, o Irã. O reconhecimento dos “direitos nucleares” indianos não poderia ser mais completo, pois Washington indicou que a sua proposta de reforma do CS limita-se ao ingresso da Índia e do Japão.
Os formuladores de política externa de Bush indicavam, antes ainda das eleições do ano passado, que o “aprofundamento das relações com a Índia” seria uma das principais prioridades do segundo mandato do presidente.
Mas, sob o pano de fundo histórico, a aliança estratégica entre Washington e Nova Delhi é uma estrondosa novidade e um rearranjo radical das peças do tabuleiro geopolítico da Ásia.
A independência da União Indiana, em 1947, realizou-se como processo traumático de partição entre a Índia e o Paquistão. A separação, promovida pela Grã-Bretanha, o antigo poder colonial, e os choques sangrentos entre hindus e muçulmanos que se seguiram empurraram em definitivo o novo governo indiano para uma postura de não-alinhamento. A Índia do líder Jawaharlal Nehru tornou-se um dos focos do terceiro-mundismo e engajou-se em programas de cooperação econômica e militar com a União Soviética.
A aliança indo-soviética aprofundou-se à medida que se configurava a rivalidade indo-chinesa. A guerra de fronteira de 1962 entre a Índia e a China, com rápida vitória chinesa, foi a senha para o início do programa nuclear indiano. O teste nuclear conduzido pela Índia em 1974 destinava-se a anunciar que Nova Delhi dispunha de um dispositivo de dissuasão contra a China. Esse teste, por sua vez, provocou como reação o início de um programa nuclear paquistanês.
Dois anos antes do teste nuclear inaugural da Índia, o presidente Richard Nixon, dos Estados Unidos, realizou a histórica visita a Pequim na qual iniciou-se a aproximação sino-americana. Os eixos rivais Washinton-Pequim e Moscou-Nova Delhi definiam as posições no tabuleiro geopolítico asiático.
Sob essa lógica estratégica, o Paquistão consolidava a sua condição de parceiro menor dos Estados Unidos e da China.
Os neoconservadores republicanos emergiram da obscuridade, na década de 70, criticando a política de Nixon e de seu assessor de Segurança Nacional, Henry Kissinger, de aproximação com a China. Mas, ao longo dos anos, presidentes democratas e republicanos mantiveram o curso estabelecido na visita de Nixon a Pequim: a aliança com a China era um pilar da estratégica americana para a Ásia, pois funcionava como componente central da “contenção” da União Soviética.
Agora, tudo mudou. O fim da Guerra Fria e da “ameaça soviética” esfriou a aliança entre os Estados Unidos e a China. Os neoconservadores, de corrente intelectual periférica, transformaram-se no núcleo de formulação da política externa americana. O “perigo chinês” toma o lugar, nas formulações do Departamento de Estado, do Pentágono e dos centros de estudos conservadores, da anacrônica “ameaça soviética”.
Ao jogar a “carta indiana”, o governo Bush faz uma leitura enviesada dos significados do crescimento econômico e da modernização militar da China. No terreno da economia, os neoconservadores bradam contra a “invasão” comercial chinesa mas obscurecem o fato de que grande parte das exportações de alta tecnologia da China são realizadas, na verdade, por multinacionais americanas estabelecidas naquele país. Eles também omitem o papel estabilizador que a China desempenha nas altas finanças globais, adquirindo títulos do Tesouro americano que financiam o gigantesco déficit dos Estados Unidos. No terreno militar, os neoconservadores lançam sinais de alerta sobre a “corrida armamentista” chinesa, mas tendem a esquecer que, em nome de seus próprios interesses estratégicos, Pequim ajuda a preservar a frágil estabilidade geopolítica da Ásia, contribuindo para a contenção multilateral da Coréia do Norte.
A parceria com Nova Delhi participa de um projeto mais amplo, de edificação de um “triângulo estratégico” envolvendo os Estados Unidos, o Japão e a Índia. A manobra equivale a empurrar a China na direção de uma aliança geopolítica com a Rússia.
Boletim Mundo n° 5 Ano 13
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